Uma das referências incontornáveis da ficção-científica materializou-se no grande ecrã em 1982. Com base no romance Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick, Blade Runner: Perigo Iminente da autoria de Ridley Scott marcou uma geração. Embora tenha conhecido diferentes versões ao longo dos anos devido a divergências artísticas entre o realizador e a produtora, todas elas se encaixaram para edificar uma obra de culto. Com o peso da responsabilidade, Denis Villeneuve atreveu-se a expandir o “universo” iniciado por Scott (aqui produtor executivo). Nasce, trinta e cinco anos depois, Blade Runner 2049.
Os eventos tomam lugar trinta anos após os episódios ocorridos em Blade Runner: Perigo Iminente. Humanos e replicantes continuam a coexistir, embora a fronteira que os separa seja mais ténue do que no original. Esta opção argumentativa oferece um generoso potencial emocional e enigmático ao espectador. Blade runners continuam a perseguir e “reformar” replicantes ilegais, mas serão estes alvos realmente robôs? E quem é realmente humano? A premissa inicial, originalmente estruturada por Hampton Fancher e David Peoples, é preservada.
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O papel anteriormente desempenhado por Harrison Ford é aqui entregue a um impávido e contido Ryan Gosling. O foco já não ilumina Deckard mas Agente K, um blade runner que desenterrará um segredo potencialmente perigoso para o equilíbrio da sociedade. A seu lado ergue-se uma fantástica Ana de Armas, afastando por diversas vezes os holofotes de Gosling com uma interpretação imersiva de Joi. O mesmo acontece com o já anunciado regresso de Ford, atirando o ator de La La Land: Melodia de Amor (e Jared Leto) para longe das luzes da ribalta. Não existem dúvidas acerca da qualidade do elenco pois todo ele é estupendo, mas são Joi e Deckard as personagens mais radiantes.
Nesta teia de personagens fantasticamente representadas, junta-se a preciosa cinematografia de Roger Deakins combinada com a ilustre cenografia de Dennis Gassner. Ambos formam um ambiente relativamente semelhante ao do filme de 1982, fortalecendo o elo de ligação entre a sequela e o original. Em trinta e cinco anos a tecnologia evoluiu a olhos vistos, o mundo de Blade Runner, pelo contrário, deteriorou-se. Está mais caótico, mais negro, mais poluído. Uma atmosfera pesada desde cedo evidenciada pela assombrosa composição musical a cargo de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer. Arrepios na espinha a cada nota comprovam o trabalho notável destes dois grandes senhores.
Não bastasse a obra em que se alicerça para lhe garantir visibilidade, Blade Runner 2049 teve um grande trabalho de marketing a suportá-lo antes de atingir os cinemas. De modo a contextualizar os eventos mencionados no filme, foram realizadas três curtas-metragens. Estas mini prequelas ajudaram a preencher lacunas e, ao mesmo tempo, a lançar mais questões. Fermentou-se a curiosidade do espectador e enriqueceu-se o mundo que estava por vir. Plantadas as sementes, a chegada de Blade Runner 2049 ao grande ecrã fê-las germinar. Felizmente Denis Villeneuve não permitiu que as curtas-metragens comprometem-se de modo algum o filme por si realizado. O mistério permaneceu, talvez até se tenha aguçado, mas nunca revelado antes do tempo.
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Blade Runner 2049 é, em muitos dos aspetos mencionados, um filme bem constituído. Se olharmos ao conteúdo, contudo, fica aquém do seu potencial. Nele encontram-se propostas interessantes de reflexão, tais como o poder da conceção da vida, mas estas não são suficientemente desenvolvidas. Por tal não se proporcionar, as potencialidades do filme mantêm-se na superfície. Ao invés de utilizar as suas próprias ferramentas para ir mais fundo, o filme de Denis Villeneuve não se arrisca pelo campo filosófico e logo aí se afasta da obra de Ridley Scott.
Blade Runner 2049 nunca poderia superar o original se não mastigasse a sua premissa. Porquê? Porque tal como Blade Runner: Perigo Eminente estava inserido num contexto e fazia sentido na época em que foi arquitetado, também a sequela se encaixa numa determinada época. De 1982 para 2017 muito se alterou. Vivemos numa sociedade diferente daquela que assistiu ao filme de 1982 e, consequentemente, o olhar sobre Blade Runner (e pelo cinema em geral) alterou-se consideravalmente. As gerações mais novas verão o filme de Ridley Scott com um olhar diferente daquele com que foi visto em 1982, da mesma forma que o filme de Denis Villeneuve o será daqui a trinta e cinco anos.
Blade Runner 2049 não é tão bom em 2017 como Blade Runner: Perigo Eminente foi em 1982, mas por ser tão delicioso apreciar a sua fotografia, cenografia, música e outras qualidades que tais, é difícil não o estimar. É um filme digno de ser visto numa sala de cinema!