Eu não gosto de biografias. Sei que já disse isto várias vezes, e hei-de voltar a dizê-lo muitas mais. As biografias raramente funcionam bem porque a realidade está só mal escrita, e a vida raramente nos dá narrativas com um princípio meio e fim bem construídos, com crescendos de tensão, clímaxes de acção, e resoluções satisfatórias. De igual forma embirro com filmes “baseados em factos verídicos”, porque na maior parte das vezes os escritores assumem que isso é justificação para escrever uma má história (porque a realidade está mal escrita), e por algum motivo que nunca compreenderei o público aparentemente leva mais a sério e sente-se mais impressionado com esses filmes porque… não sei, não faz nenhum sentido. Se querem factos verídicos vão ler um livro de história.
Trumbo é uma biografia de Dalton Trumbo, e é baseado na crise da caça às bruxas do McCarthyismo que ocorreu nos anos ’50 na América do pós-guerra quando o medo dos comunistas estava no seu auge (antes de voltar a estar no seu auge outra vez nos anos ’80). Fui ver o filme à espera de uma biografia medíocre com uma excelente interpretação do Bryan Cranston. Enganei-me numa destas coisas.
O filme tem uma excelente história. Não fosse pelo facto de eu saber que Dalton Trumbo foi uma pessoa verdadeira e de os eventos do filme terem mesmo acontecido, nunca diria que esta era uma biografia. A história tem um excelente ritmo, desenvolve-se muito rapidamente e avança imenso, há vários momentos durante o filme em que é difícil de prever o que vem a seguir, há várias reviravoltas interessantes na história que a mantém interessante, a conclusão é muito satisfatória.
Eu posso ser um pouco enviesado porque os eventos da segunda Ameaça Vermelha e do McCarthyismo são-me particularmente fascinantes, mas contrariamente à maioria dos filmes baseados em eventos verdadeiros, este tem um tema que é verdadeiramente interessante. Todo o conflito entre a liberdade de expressão, os direitos civis contra as forças políticas opressoras e da censura é sempre entusiasmante, mas admito que este tipo de narrativa de conflito político/social possa não ser para toda a gente.
Vou agora refrear-me de explicar pormenorizadamente a história e os motivos por detrás destes eventos, porque isso seria aborrecido para a maior parte de vocês e porque, inteligentemente, o filme também não mergulha a fundo nisso. Na realidade a abordagem histórica e política do problema está extremamente bem equilibrada no filme. A gravidade e importância do problema são muito bem transmitidos pela história, sem que nunca se passe demasiado tempo em detalhes políticos que poderiam ser desinteressantes. Em vez disso a história foca-se mais no impacto que toda a crise teve na vida pessoal de Dalton Trumbo, e nas suas relações com a sua família e com os seus amigos. A maior parte do drama da narrativa vem exactamente destas interacções e da maneira como vão ficando progressivamente sob mais tensão à medida que as complicações se vão desenvolvendo. Estes problemas relacionais surgem sempre de maneira orgânica a partir das complicações, nunca parecem forçados, e têm sempre consequências para as decisões das personagens.
Em suma, a história está muito bem escrita.
Bryan Cranston está fantástico no seu papel. Não que tivéssemos alguma dúvida disso, mas ele encarna a personagem de Dalton Trumbo na perfeição. Muitas vezes o que acontece nestas biografias é que os actores estão tão preocupados em captar as particularidades da pessoa que estão a representar que se esquecem da interpretação propriamente dita. Bryan Cranston capta Dalton Trumbo ao milímetro (no fim do filme é possível ver entrevistas de época ao Dalton Trumbo, e notamos que Cranston lhe apanhou todas as pequenas inflexões de voz e maneirismos) e no entanto é capaz de dar uma amplitude emocional enorme e subtil ao mesmo tempo. Cranston mais do que merece a nomeação ao Óscar (mas como não foi comido por um urso não o vai ganhar).
O resto do filme, infelizmente, não consegue ser assim tão bom, caindo confortavelmente na categoria de competente. O elenco de secundários é composto por uma quantidade de ilustres, entre eles Diane Lane, Elle Fanning, Helen Mirren, John Goodman e Louis C.K., nenhum dos quais, apesar de terem boas interpretações, consegue sequer começar a roubar a cena a Cranston.
A realização e a fotografia fazem o seu papel bem, mas não se destacam de nenhuma maneira. A direcção de arte está muito bem feita, recreando de forma realista a América dos anos ’50, mas também não chama assim muito à atenção.
Uma nota final à música que, num misto de jazz e goldien-oldies, consegue contribuir muito bem para o ritmo do filme.