Já o disse várias vezes e volto a dizê-lo: não gosto de biopics ou de histórias baseadas em factos verídicos. A vida está mal escrita, e apesar de poder providenciar boas ideias para histórias, raramente tem uma estrutura narrativa que seja apelativa. Se eu quisesse ver representações da realidade via documentários.
Milagre no Rio Hudson conta a história real de Sully, um piloto de avião que em 2009, quando estava a sair do aeroporto de LaGuardia em Nova Iorque é forçado a fazer uma aterragem de emergência no rio Hudson.
É por esta altura que eu faria um aviso de spoilers, mas não preciso porque basta olhar para o raio do título ou cartaz do filme para perceber que acaba tudo bem. Mesmo que assim não fosse, as primeiras cenas do filme são a mostrar-nos que acaba tudo bem. Portanto qualquer forma de suspense ou incerteza quanto ao desfecho da história são atiradas pela janela fora.
A narrativa do filme alterna entre mostrar-nos o desastre do avião (que na realidade não é desastre nenhum, é um milagre, lembras-te? Corre tudo bem) em flashbacks pelo menos umas três vezes durante o filme, e as cenas de inquérito a porque é que o Sully tomou a decisão de aterrar o avião no rio (divertido, huh?).
O maior erro deste filme é ter sido feito, em primeiro lugar!
As cenas do avião são competentes. É engraçado ver por vários ângulos o avião a voar pelo meio dos edifícios até finalmente parar na água, mas quantos desses é que consegues ver até te aborreceres? As cenas dentro do avião com os passageiros assustados são muito realistas. Realistas no sentido em que as pessoas estão relativamente assustadas mas ainda assim conseguem manter a calma e seguir as instruções das hospedeiras, levantam as mesas e endireitam os assentos, põe-se em posição de segurança, e depois descem pelas mangas das saídas laterais, e ninguém se magoa. É muito realista, um excelente filme baseado em factos reais que por acaso são extremamente aborrecidos. Não que eu queira que as pessoas se magoem, mas é um filme de entretenimento! Mostrem-me coisas a acontecer!
As cenas do inquérito ao acidente (porque aparentemente o avião podia ter aterrado em dois aeroportos próximos e não na água) são tão aborrecidas como podes imaginar que um inquérito formal sobre as minúcias de engenharia e detalhes de procedimentos de segurança possam ser.
Nem sequer a personagem principal, interpretada por Tom Hanks, consegue ser interessante. Sully é um homem calmo, razoável, comedido, que está preocupado e nervoso porque lhe estão a fazer um inquérito porque houve um acidente de avião. Há um ou dois flashbacks da sua juventude, mas que não contribuem rigorosamente nada para a narrativa ou sequer para tornar a personagem mais interessante. É absolutamente bidimensional, sem carisma, sem interesse narrativo.
Há personagens secundárias, mas que são ainda mais esquecíveis. Milagre no Rio Hudson ainda tenta dar foco a alguns dos passageiros, mostrando um pouco da vida deles antes de entrarem para o avião, mas falha completamente em torná-los interessantes. Não me consegui importar com nenhum deles, e como o título do filme avisa, salvam-se todos e nunca estão em perigo real.
Nota que não há propriamente erros no filme, não há coisas mal feitas ou mal escritas. Simplesmente, como o filme pretende ser baseado nos factos reais do que aconteceu, e aparentemente tenta ser o mais fidedigno possível, aquilo que conta é muito aborrecido. A cinematografia é boa, a montagem é boa, as interpretações são competentes, a realização é boa, os efeitos especiais fazem o seu papel, a música não distrai e constrói ambiente, o ritmo está lá. O maior erro deste filme é ter sido feito, em primeiro lugar!
Não fosse já óbvio pelo seu apoio a Trump, este filme é evidência da senilidade crescente de Clint Eastwood. Longe vão os tempos de Imperdoável, Mystic River, Cartas de Iwo Jima e Gran Torino.
Mas eu sei que há um público para este tipo de filme. É o tipo de pessoa que diz que gosta de filmes “baseados em factos verídicos” como se esses tipos de filmes fossem de alguma maneira superiores. O tipo de pessoa que sistematicamente compra livros com títulos como “Queimada” ou “Vendidas” que contam histórias verídicas de coisas horríveis que aconteceram a pessoas verdadeiras, porque têm grandes “lições de vida”. É o tipo de pessoa que tipicamente desdenha e desvaloriza filmes de ficção-científica ou fantasia que têm muitos efeitos especiais porque não têm uma mensagem, ou lições de vida.
Milagre no Rio Hudson é para essas pessoas. É um filme inerte, seguro, sem ideias entusiasmantes, sem arestas aguçadas, baseado em factos reais, e que até tem no fim uma mensagem forçadamente profunda sobre relações humanas.