O Cubo Geek teve acesso a algumas perguntas feitas ao realizador François Ozon, relativamente ao seu filme Uma Nova Amiga, que estreou em Portugal a 26 de Maio.
De onde veio a ideia para Uma Nova Amiga?
O filme é livremente inspirado num conto de Ruth Rendell, “The New Girlfriend”, uma história de quinze páginas no espírito da série televisiva “Hitchcock apresenta”: uma mulher descobre que o marido da sua amiga traveste-se às escondidas. Ele torna-se a sua nova amiga, mas assim que ele lhe declara a sua paixão e tenta fazer amor com ela, ela mata-o. Eu tinha lido este conto na altura de Une Robe d’Été, há cerca de vinte anos, e tinha escrito uma adaptação muito fiel para uma curtametragem, mas não tinha encontrado financiamento, nem o elenco ideal, por isso tinha abandonado este projecto. Pensava naquela história que me assombrava com frequência, e dei-me conta de que os grandes filmes sobre o travestismo que eu gostava eram aqueles onde a personagem se travestia à partida não por um desejo pessoal mas por uma contingência exterior: músicos perseguidos pela máfia obrigados a disfarçarem-se de mulheres em Quanto Mais Quente Melhor, um actor no desemprego que se torna actriz para um papel em Tootsie – Quando Ele Era Ela ou uma outra actriz em dificuldades financeiras em Victor/Victoria… Estas circunstâncias exteriores permitem aos espectadores identificarem-se com as personagens e desfrutar do travestismo sem culpa ou desconforto. Billy Wilder era para mim a referência perfeita para tratar tal tema. Excepto que, no caso desta história, a personagem tinha já dentro dela este desejo, antes mesmo de passar à prática.
De onde vem a ideia do luto para permitir ao espectador identificar-se mesmo assim com David/ Virginia?
Esta ideia do luto, que não existia no conto, permite ao espectador e à Claire compreender o comportamento do David antes de aceitá-lo. Daí a importância do flashback com a cena na qual o David consegue acalmar e alimentar o seu bebé graças ao cheiro da blusa da mulher morta. Tive esta ideia graças a uma conversa com Chantal Poupaud, que realizou Crossdresser, um documentário sobre as pessoas transgénero (apaixonante o ritual concreto da transformação: depilar-se, maquilhar-se, esconder a barba…). Ela conhece muito bem este meio, e por isso pedi-lhe para me falar sobre os travestis que ela conhecia e ela falou-me de um deles, a esposa estava muito doente, sabia que ia morrer e tinha optado por desaparecer da vida do seu marido. Para fazê-la viver, ele tinha decidido vestir-se com as roupas dela regularmente. Esta ideia fascinou-me e preocupou-me de imediato. Tinha encontrado finalmente a chave para poder adaptar e escrever a minha história. […] No início do filme, com alguns recursos visuais muito fortes, acompanha vinte anos de vida… Isto era importante para a identificação das personagens. No argumento, tinha escrito uma voz off explicativa mas, durante a rodagem, tentei contar e visualizar o máximo de coisas através dos movimentos de câmara e da montagem, a voz off já não era necessária. Considerando as etapas da vida – a infância, a amizade, o casamento, o nascimento de uma criança, a doença, a morte – o risco era cair no kitsch, era preciso encontrar a distância certa para criar emoção.
Uma Nova Amiga situa-se num espaço pouco definido geograficamente.
Alguns dos meus filmes são ancorados numa realidade muito precisa e documentada. Outros criam o seu próprio mundo, como 8 Mulheres, Dentro de Casa ou Uma Nova Amiga. A minha ideia era encontrar a dimensão universal e intemporal dos contos de fadas, género presente desde o início do filme com o cadáver de Laura no seu caixão, e no fim quando Virginia acorda tal como La belle au bois dormant.
A única vez que eles fazem amor, a Claire rejeita o David: “Tu és um homem…”
Esta frase faz, literalmente, quase sorrir. A Claire está perdida, ela sabe bem que não se está a deitar com uma mulher, mas tinha quase esquecido isso, e aquele momento sexual trá-la de volta à realidade, um pouco como no conto. Excepto que a personagem da Ruth Rendell mata quando se dá conta dos pelos de homem que a repugnam. Aqui, é como se a Claire matasse a Virginia ao rejeitá-la, mas de uma forma simbólica e acidental. E a sua rejeição é apenas uma etapa do seu percurso. De seguida, ela fá-la-á reviver, ao aceitá-la tal como é, e ao reconhecer que se tornou ela própria mulher graças a Virginia. De uma certa forma, a Claire ressuscita a Virginia – aquilo que não conseguiu fazer com Laura.
Lê a critica de Uma Nova Amiga.