Greta Gerwing abriu a sua caixa de recordações e escreveu, como afirmou a própria, uma carta de amor a Sacramento, na Califórnia. E qual seria a melhor forma de a escrever senão através do olhar de quem de lá quer escapar e se apercebe do quanto a ama quando o faz. E qual seria a melhor forma de a enviar senão carimbada pelo seu mais recente filme, Lady Bird.
O segundo filme realizado por Gerwing, precedendo-lhe Nights and Weekends (2008), é ainda uma carta dedicada a todas as mães e a todas as filhas que conhecem a verdade e o pesar, a felicidade e o sacrifício, e a eles se entregam na base do amor.
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Embora o filme esteja grandemente caracterizado pelas preocupações, experiências e dilemas de uma adolescente, o conflito principal frui do relacionamento entre Lady Bird (Saoirse Ronan) e a sua mãe Marion (Laurie Metcalf). Existe um amor incondicional entre ambas, embora exista também um choque intenso de personalidades. O pragmatismo da mãe em conflito com os sonhos da filha colocam em cena uma verdade incontornável: nem tudo é sobre nós, sobretudo e acima de tudo quando se tem um filho e, por outro lado, nem tudo é sobre nós, especialmente quando somos parte de uma família.
a relação entre mãe e filha é trabalhada minuciosamente mas interpretada com simplicidade, daí ser tão comovente.
Imprimindo ténues pinceladas de memórias pessoais a Lady Bird, a realizadora oferece ao espectador o retrato de uma vida, um pedaço de vida, a de Christine ‘Lady Bird’ McPherson. Um pedaço de vida marcado pela rebeldia de uma adolescente com a ambição de ingressar num colégio de artes em Nova Iorque, a fim de voar para longe e absorver novos horizontes. Estudante num colégio católico, a vida de Lady Bird é em certa medida influenciada pelos dogmas da religião. O nome a si e por si atribuído, Lady Bird, revela-se simbólico do espírito de contestação da jovem. A decisão de manutenção ou rotura desse símbolo marcará o momento do “voo”, metaforicamente falando, da jovem. Marcará o seu crescimento e os primeiros passos em direcção ao futuro, seja ele qual for.
Numa abordagem simples, Lady Bird convida o espectador a conhecer as feridas de uma família unida mas quebrada; a acompanhar o percurso de uma adolescente a descobrir a sua sexualidade e o seu lugar no mundo; e a revisitar as intrigas do secundário. A frescura do filme não vem, efectivamente, do seu argumento mas da exploração do mesmo.
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O momento inicial do filme é o primeiro indício da extrema ternura de Lady Bird e uma amostra da sua total composição (num momento tudo é sereno e no outro tudo se fragmenta). Marion e Lady Bird estão no carro, emocionadas, a ouvir na rádio uma passagem da obra “The Grapes of Wrath” de John Steinbeck. A escolha de Greta Gerwing foi única, pois convoca uma analogia com as dificuldades vividas pela família de Lady Bird. Em adição, a leitura de A People’s History of the United States pela personagem interpretada por Timothée Chamalet, Kyle, transporta-nos para o filme O Bom Rebelde (1997), quando a personagem de Matt Damon diz a Robin Williams:
If you want to read a real history book, read Howard Zinn’s A People’s History of the United States. That book will knock you on your ass.
E num filme com apontamentos literários, musicais (Crash Into Me de David Matthews Band ou O Qubra-Nozes de Tchaikovsky), culturais e uma cinematografia atraente, o final sabe a pouco. O corte para negro e o silêncio que o acompanha é um ato ousado e impactante no cinema. O que virá a seguir? O que estará prestes a acontecer? Por vezes, nada vem, nada acontece. Por vezes o objetivo do corte é provocatório, é incómodo, despertando a consciência do espectador e incentivando à sua reflexão (A Origem (2010) de Christopher Nolan assenta genialmente na descrição). Lady Bird recorre a esse padrão de final capaz de provocar tão desconcertante entusiasmo no espectador, mas será que consegue?
Não obstante, Lady Bird é um filme encantador graças a uma simplicidade que, na sua essência, é complexa.