Crítica | Preacher – 1ª Temporada

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Por Gui Santos escritor/a em SOMOSGEEKS.PT
Sou um cinéfilo viciado em narrativa, dado a devaneios pretensiosos, e a ficar constrangedoramente entusiasmado com tudo.

É difícil escrever sobre Preacher. A banda-desenhada original foi escrita por Garth Ennis e ilustrada por Steve Dillon, tendo sido publicada entre 1995 e 2000, pela Vertigo, uma subsidiária da DC Comics. A Vertigo especializou-se em publicar bandas desenhadas com temas mais adultos, heróis mais ambíguos e arte mais experimental, e ajudou a popularizar obras como Swamp Thing, Hellblazer e Sandman.

À semelhança destas obras, Garth Ennis tentou construir com Preacher uma obra que fosse adulta, violenta, intensa, e por vezes muito cómica. E conseguiu! Preacher, no seu pico, chegou a vender 50 000 fascículos por mês. Nessa altura já se faziam adaptações de bandas desenhadas para cinema/televisão. Porque não Preacher? Porque é que demorou 16 anos até que Preacher fosse adaptado? Exactamente pela razão do seu sucesso inicial.

Preacher

Percebe, Preacher é violento e é adulto, mas isso não impediu que Blade, que anda a matar vampiros à espadeirada com imenso gore, fosse transformado em filme em 1998. É a maneira como Preacher é violento e adulto. Preacher não se limita a mostrar gore, ou sexo, ou temas muito pesados como o suicídio ou o abuso. Preacher pega nesses elementos, apresenta-os de maneiras muito especificamente extremas, perde tempo e narrativa a demonstrar exactamente de que maneira são particularmente depravados, e depois ri-se disso! Todas as suas personagens são ambíguas, não há heróis definidos (vilões há com fartura), e nunca sabemos bem se podemos torcer ou não por um protagonista, porque sabemos que meia dúzia de fascículos mais à frente há uma boa probabilidade de que o protagonista com quem empatizamos não vá fazer alguma coisa horrível, mas que nós provavelmente queríamos que acontecesse! Foi esse nível de especificidade na sua violência, os extremos do seu humor negro, que fizeram com que Preacher não fosse adaptado durante tanto tempo.

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Por isso quando surgiu a notícia de que Preacher finalmente ia ser uma série de televisão, eu fiquei cheio de entusiasmo e medo (tu és geek, sabes exactamente de que emoção é que eu estou a falar). “Raios!” pensei eu, “Preacher é tão bom! Tem tanto para correr bem! Mas ao mesmo tempo pode correr tão mal! Basta eles terem medo para a série ficar estragada!”. Mas depois percebi que a série estava a ser escrita pelo Seth Rogen e pelos autores originais, o Garth Ennis e o Steve Dillon, e voltei a encher-me de esperança outra vez.

Depois a série estreou, e abre desta maneira:

Aquela abertura com as letras brancas gigantes a dizerem “OUTER SPACE” e os efeitos especiais baratinhos reminiscentes dos anos ’60 dizem quase tudo o que devia ser preciso saber acerca desta série. O padre numa aldeia rural africana a fazer a sua missa, que é possuído por algo que veio do OUTER SPACE, que usa um poder para calar toda a gente e depois explode num banho de sangue. A cena de um minuto e meio que só mostra um padre muito cansado, de ressaca, a fumar logo de manhã, que vai corrigir a mensagem profana à frente da sua igreja.

Esta série é estranha!

Preacher conta uma história bizarra, com personagens difíceis de definir, de uma maneira invulgar, com um sentido de humor difícil de perceber, e com momentos tão agressivos que parece que nos querem magoar pessoalmente.

Não é de todo uma série fácil. Não falei com ninguém que tenha visto a série, e eu próprio senti isto, que nos primeiros episódios tivesse decidido se gostava da série ou não. Toda a gente dizia “É interessante, mas não estou a perceber nada do que se passa, vamos ver onde isto vai parar”.

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Uma das primeiras coisas que me chamou a atenção na série foi o ritmo. Os primeiros episódios são muito lentos, acontece muito pouco. A série passa imenso tempo a explorar e a estabelecer o setting da acção e a apresentar as suas personagens. São eventos quase banais do dia a dia, momentos imemoráveis que acontecem na cidade de Annville no Texas, e ao seu padre residente. É arriscado fazer isto! Quantas séries é que começaste a ver, apenas para ser cancelada ao fim de uma temporada ou duas porque não estava a agarrar público suficiente? Passar os primeiros episódios de uma série com um ritmo muito lento, sem grande progressão narrativa ou sequer sem apresentar claramente o conflito não é definitivamente a melhor maneira de viciar uma audiência!

Depois o mundo que nos é apresentado é horrível! Annville, Texas, é o último lugar onde eu quereria viver! Parece ser insuportavelmente quente, as ruas são feias, não há paisagem de que falar, e é populada por toda a espécie de bêbedos, doidos, ignorantes, religiosos, cruéis, violadores e pedófilos. Quase todas as interacções que as personagens principais têm com personagens secundárias servem para mostrar quão más pessoas umas ou outras são.

Esta série é estranha!

As personagens principais também não ajudam nada! O Padre, Jesse Custer, que assumimos que deve ser o herói porque ele parece ser o foco da narrativa e é aí que costumamos encontrar o herói, é um tipo carismático, bem parecido, mas que é claramente um alcoólico, irresponsável, desmotivado, e logo nos primeiros episódios dá uma tareia tão violenta a um tipo que ele pensa que está a bater na mulher, que até as pessoas à volta acham que ele está a exagerar. O Padre parte-lhe o braço, e gosta de o fazer mais do que se esperaria de um membro do clero. A Tulip, interesse romântico do Jesse, é uma mulher impressionantemente competente, independente, engenhosa e badass, que ao mesmo tempo é incrivelmente egoísta, impulsiva, infantil e violenta. Há o raio do Cassidy, que é, e não estou a gozar contigo, um vampiro toxicodependente. Estas personagens são fabulosamente interpretadas por Dominic Cooper, Ruth Negga e Joseph Gilgun que parece que nasceram para estes papéis, e isso é dizer pouco.

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Mas é exactamente à custa do ritmo lento de que eu estava a falar ao início que vamos lentamente percebendo as camadas nestas personagens. Com o evoluir da série, e porque há tanto tempo e espaço para as personagens evoluírem e interagirem e irem demonstrando mais de si mesmas, vamos percebendo a profundidade delas e a empatizar com elas de uma maneira surpreendente. Não é que fiquem melhores pessoas! Não, não! As personagens nunca se tornam menos ambíguas ou cheias de conflitos internos. Mas ficamos a conhecê-las! Não há decisões que pareçam ir contra a personalidade delas, porque essa personalidade já foi estabelecida como sendo multifacetada. Como uma pessoa real, percebes?

O resto da série só vai ficando mais bizarro e estranho e desconfortável.

Porque o conflito central da história é que Jesse obtém um poder que lhe permite comandar as pessoas a fazerem o que ele quiser. O Jesse tenta usar esse poder para fazer o bem, mas as coisas começam a correr mal, e a correr mal da pior maneira possível. Ao mesmo tempo há dois Anjos (Tom Brooke, Anatol Yusef) vestidos de magnatas texanos que descem à terra para tentar recuperar esse poder. Ao mesmo tempo há o Xerife bronco, casmurro e preconceituoso (W. Earl Brown) que está determinado a prender o Jesse a qualquer custo, e cujo filho (Ian Colletti), que é a única pessoa genuinamente boa na série inteira, tem a cara deformada (parece um olho do cu) depois de uma tentativa de suicídio falhada, e é confidente do Jesse. Ao mesmo tempo há o Presidente (Jackie Earle Haley) da corporação local, que manda em tudo e todos, inclusive na polícia, e que é violento e tem um fetiche por carne, e quer ficar com a igreja do Jesse.

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A série sai do seu caminho para nos mostrar as piores coisas que estas personagens podem fazer umas às outras. Não estou a falar sequer necessariamente de violência física ou gore (se bem que estes existam em abundância), estou a falar de sofrimento, desespero, raiva, desconforto, terror, medo, desconforto. A série foca-se muito nesse tipo de emoções, negativas e pesadas, e depois, muito frequentemente, desfaz esses momentos de tensão cobrindo-os com uma camada de comédia, que por força das circunstâncias é sempre muito negra, e obriga-nos a rirmo-nos de cenas por vezes verdadeiramente perturbadoras. É uma maneira brilhante de provocar na audiência um estado emocional muito específico e invulgar (mais uma vez, não é com este tipo de coisas que se ganham legiões de fãs).

É incrivelmente difícil explicar-te melhor a narrativa sem a spoilar, e acho que neste caso isso seria mesmo uma pena. Prefiro dizer que é bom porque é bom, do que estragar-te a descoberta da história. Posso dizer que é das maneiras mais originais que eu já tenho visto de falar sobre crença, religião, fé, moralidade, responsabilidade e amizade. Pelo meio há todo um sub-enredo que envolve um cowboy no Texas do Séc. IX, e que não se percebe bem o que é mesmo até ao fim da série. Ah, e não te esqueças que o outro é um vampiro!

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A realização e fotografia são excelentes! A luz desta série é lindíssima, lidando perfeitamente com meios-dias de luz incandescente, bares à meia luz iluminados por néons, noites de deserto iluminadas por postes de luz amarelada. A luz serve sempre para compor a cena, e por diferente que seja, consegue sempre transmitir um tom e ambiente que estão em perfeita sintonia com o tom da cena. A realização está perfeita, construindo momentos de tensão extremamente intensos, sequências de acção muito bem executadas e com uma atenção ao ritmo que só se torna evidente quanto mais se avança na série.

Mais uma vez, e à semelhança de Stranger Things, Preacher é uma série que se dá ao trabalho e ao tempo de estacionar a narrativa durante um bocado só com o intuito de construir um plano, ou um momento emocional entre personagens que seja uma obra de arte em si mesma (outra vez, esta série não está a fazer favores a si mesma no que toca a criar engajamento da audiência).

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O mais brilhante no meio disto tudo, é que os escritores da série, decidiram colocar a acção antes do início da acção na Banda Desenhada original. Ou seja, esta temporada de Preacher funciona como uma prequela à BD. Isto é genial, não porque seja original e criativo fazê-lo desta maneira (é), mas porque desta maneira a série está a estabelecer as suas próprias premissas e o seu próprio tom antes de sequer começar a adaptar a banda desenhada propriamente dita.

Mais importante do que tudo isto, é que a série consegue capturar exactamente o perfil emocional de empatia, desconforto, horror e humor que eu senti quando lia a banda desenhada original. Melhor do que isso ainda, é que a série estabelece que apesar de ser esse o perfil emocional que vai criar, vai fazer as suas próprias alterações à obra original, vai mudar onde achar que é preciso mudar.

E depois de ver esta primeira temporada, eu confio no Seth Rogen!

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2 COMENTÁRIOS

  1. FINALMENTE NA ESTRADA! Gostei do facto de que esta temporada toda foi uma prequel onde construiram os personagens para mostrar aquilo que realmente são e para os preparar para o que se vai passar a partir de agora! Acho que podia odiar esta série e o seus personagens e continuaria a assistir só por causa da fotografia e dos cenários tão lindos e bem apresentados que tem. Apesar do ritmo lento inicial que quase me fez desistir no segundo episódio, esta temporada desenvolve-se bem e acelera um pouco nos ultimos episódios para deixar nos espetadores aquela sensação e aquele gostinho de “quero mais”. Para além da fotografia quero ainda salientar as atuações fantásticas (o xerife que mata aquele “anjo” na banheira, sentindo-se incialmente com pena e uma certa dor mas que acaba por revelar-se tão cruel e frio) e aquelas que são algumas das melhores cenas de luta de sempre sendo elas: Cassidy no avião (ep1); Jesse e o som do coelho (ep1); Jesse, DeBlanc e Fiore contra aquele anjo “mau” (ep5?); e finalmente a do Santo no bar (ep9?) que eu assumo que era o próprio inferno em que este vivia ao reviver aqueles momentos vezes sem conta. Enfim, esta série é um 9.5/10 e mal posso esperar pela próxima season.

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