Deixa-me explicar-te o que é que aconteceu com Stranger Things. A única coisa que pode ter acontecido! A Netflix precisava de fazer uma série nova, então raptaram-me a meio da noite, fecharam-me numa sala e vieram fazer-me perguntas.
Netflix: Deves estar a questionar-te porque é que estás aqui.
Gui: Nem por isso, isto acontece-me mais ou menos de 15 em 15 dias.
Netflix: Hum… Ok… Qual é teu género de ficção preferido?
Gui: Isso é fácil. Ficção Científica.
Netflix: Ok, e o teu segundo género preferido?
Gui: Hmmmm… aventuras?
Netflix: E o teu realizador preferido?
Gui: Spielberg!
Netflix: Ok… e os filmes que mais marcaram a tua infância?
Gui: Provavelmente E.T. – O Extra-Terrestre, Os Goonies, qualquer outra coisa do Spielberg.
Netflix: Ok, e quais foram os primeiros filmes de terror que te meteram mais medo durante a tua infância?
Gui: Hm, deixa pensar… Alien – O 8º Passageiro, Poltergeist. Lembro-me de não dormir três noites por causa de Pesadelo em Elm Street.
Netflix: Ok, ok, interessante. E agora, qual é o teu tipo de jogo preferido?
Gui: Beh… Pen and Paper Role Playing Games?
Netflix: Vá, deixa de ser snob. Não digas as coisas de maneira propositadamente críptica para obrigar as pessoas a perguntarem o que é que queres dizer.
Gui: Ok pronto, Dungeons & Dragons. Mas eu nunca joguei mesmo D&D, eu gosto mesmo é de GURPS ou Savage Worlds, são mais mod- ZZZZZP.
Nesse momento brilharam-me uma luz branca nos olhos que me fez esquecer tudo o que tinha acontecido. Depois foram à sua vida e fizeram uma série a pensar em mim, especificamente, com todas as referências que eram importantes para mim, que tinham ajudado a definir os meus gostos de ficção e que me entusiasmam a um nível emocional quase subconsciente. Eu sou provavelmente a pessoa menos objectiva para falar de Stranger Things.
Stranger Things conseguiu influenciar-me a um nível pessoal e íntimo que eu não esperava ser possível. É impressionante a ressonância emocional que eu senti com esta série, a relação que eu consegui estabelecer com as personagens, o investimento que ganhei com o enredo. Este tipo de coisa não acontece por acidente.
É bom, por uma vez, ser o público-alvo de uma obra. Não é algo que aconteça muitas vezes, mas tem vindo a acontecer mais. Provavelmente porque eu agora tenho mais poder de compra. A verdade é que eu gosto tanto de Stranger Things como gostei de Guardiões da Galáxia. Apertaram ambos os mesmos botões muito específicos que me fazem gostar de uma coisa. Não é por acaso que os primeiros 10 minutos de Guardiões da Galáxia tenham exactamente a mesma estética dos anos ’80 presente em Stranger Things.
Já vi muita gente e muitos textos a dizerem que esta série é uma homenagem a filmes e séries dos anos ’70 e ’80, mas eu discordo. Uma homenagem são algumas referências, algumas cenas que evocam uma outra obra. Stranger Things é outra coisa completamente diferente. Há listas enormes que podes encontrar na Internet sobre as muitas cenas paralelas entre Stranger Things e outros filmes dessa altura, mas não quero deixar esta crítica redundar numa lista dessas (até porque nós também vamos escrever uma lista dessas). Se fossem só essas cenas, eu poderia considerar que era uma homenagem, mas é muito mais do que isso.
Não, desde a fonte usada no genérico, elementos narrativos do enredo, as imperfeiçõezinhas brancas no ecrã que associamos às fitas de VHS, às técnicas de cinema usadas para filmar, a composição das cenas, a música (a música!), os adereços, as roupas, as texturas dos lençóis, tudo em Stranger Things foi metodicamente planeado de maneira a emular a estética, forma e tom dos filmes de ficção-científica/aventura/terror dos anos ’80.
Mais do que uma homenagem, Stranger Things consegue ser uma recriação tão perfeita dos tropes usados no cinema dessa época, que mais parece ter sido feito nessa altura. Não teria destoado se tivesse passado na televisão nessa altura. Mas não te deixes distrair pelo fogo de vista, e não penses que Stranger Things só vale pela nostalgia.
O enredo é um dos melhores mistérios de ficção científica que tenho visto ultimamente. Sem querer fazer spoilers, posso dizer que há bases científicas sólidas às ideias apresentadas na história, essa ciência é esticada e especulada um bocadinho, só o suficiente para abrir portas à ficção, e é daí que surge o conflito da acção. A exposição desse conflito e a progressão da acção estão fantasticamente construídos para jogar com o género de ficção científica/terror/mistério que a série constrói. As personagens estão sempre um ou dois passos atrás do mistério que têm de resolver contra-relógio ao mesmo tempo que a ameaça dos antagonistas se torna cada vez mais imediata.
Os eventos no enredo desenrolam-se de forma muito lógica, muito natural. Não acontecem coisas só porque sim, não caem soluções do céu, não há coisas que correm mal só para prolongar mais um bocadinho a história. O enredo é explorado em três sub-enredos específicos que seguem a abordagem ao mistério central de três grupos de personagens distintas. Porque é dessa maneira que a série consegue ter tantas referências e consegue parecer um mash-up de tanta coisa ao mesmo tempo, sem nunca ficar incoerente ou dispersa. Não é só questão de atirar para lá referências, a narrativa está construída de maneira a suportá-las e a enriquecer-se à custa delas.
Há as crianças, cuja narrativa segue os tropes da aventura dos “miúdos em bicicletas” tão presente em E.T. – O Extra-Terrestre e em Os Goonies, e que explora o tema do poder da amizade; há os adolescentes cuja narrativa segue as premissas dos teens-slashers como Pesadelo em Elm Street e Carrie, e que explora a sexualidade; há os adultos, cuja narrativa é semelhante a thrillers de terror e mistério como Exorcista, Twin Peaks e Shining, e que explora a temática do amor. Todos os enredos vão-se conectando e influenciando reciprocamente até convergirem todos numa resolução que é satisfatória a todos os níveis. Se isto te parece uma escrita diferente (arriscaria a dizer moderna) do que aquela que era prevalecente nos anos ’70 e ’80, não é só impressão tua (lembra-te disto, vai ser útil mais à frente).
E as personagens são, todas elas, espantosas. Este é um dos aspectos em que Stranger Things foge ao seu material original, e onde começamos a perceber o que é que os The Duffer Brothers estão na realidade a fazer. Contrariamente aos filmes de ficção científica/fantasia dos anos ’70 e ’80, onde o foco estava no enredo e a maior parte das personagens eram geralmente unidimensionais, todas as personagens em Stranger Things são complexas e ambíguas. São raras as personagens simples. O Xerife viciado em comprimidos e que não se importa com nada, revela-se como muito mais competente e investido do que poderíamos esperar, a mãe destroçada e desesperada pelo desaparecimento do seu filho, revela-se muito mais racional e lógica do que nos é feito supor, as crianças por vezes fazem decisões parvas que desculpamos por serem crianças, por vezes tomam decisões e têm insights que nos impressionam pela sua maturidade, as personagens adolescentes nunca se definem inteiramente como sendo boas ou más, tomando atitudes e decisões tanto certas como erradas, e até o grande vilão demonstra momentos de ternura e afecto que não permitem caracterizá-lo simplesmente como um monstro.
Eu sou provavelmente a pessoa menos objectiva para falar de Stranger Things.
É neste momento que eu digo que todo o elenco faz interpretações fabulosas. O elenco de adultos composto por Winona Ryder, David Harbour e Matthew Modine regressam em força de carreiras que aparentavam estar adormecidas. O elenco de recém chegados adolescentes e crianças Finn Wolfhard, Millie Bobby Brown, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughlin, Natalia Dyer, Charlie Heaton e Joe Keery, são todos eles impressionantes e tenho a impressão que os vamos ver a todos nos próximos tempos, a aparecer por todo o lado. Millie Bobby Brown, em particular, que interpreta Eleven, a rapariga que é a personagem principal, faz uma interpretação assombrosa, expressando emoções com uma enorme subtileza e transmitindo ternura com o melhor under-acting que tenho visto ultimamente.
Mas se os Duffer Brothers são excelentes na escrita, não ficam atrás na realização. A realização de Stranger Things é tão apurada e eficiente que não só consegue criar uma estética visual e um tom que são recriações quase perfeitas dos anos ’70 e ’80, mas usando-a como suporte consegue criar momentos artísticos lindíssimos e momentos de tensão verdadeiramente de tirar o fôlego. Há a sequência hipnotizante em que a personagem de Winona Ryder dança com as luzes de Natal na sua sala. Há os momentos verdadeiramente assustadores de confronto com o monstro, em que a tensão cresce e cresce e cresce e é resolvida da maneira mais aterrorizante possível. Há a criatividade visual que constrói uma sensação emocional muito específica de desconforto e bizarria quando vemos o mundo por onde Eleven viaja pela primeira vez.
Ou seja, há momentos em que a série pára durante cinco minutos de ser um fan-service dos anos ’80, momentos em que não se preocupa em caracterizar as personagens ou desenvolver o enredo, e sustém-se durante mais alguns segundos para marcar uma emoção, ou manter uma imagem para a podermos apreciar. No ambiente comercial actual em que uma série vive ou morre pelo engajamento que gera na sua audiência, e em que muito desse engajamento se prende com uma narrativa muito rápida, em que o enredo está sempre a desenvolver-se com grandes momentos e twists, esta série tem a coragem de parar cinco minutos para nos mostrar imagens ou construir momentos que podiam existir como obras de arte em si mesmos.
E a maneira que os The Duffer Brothers encontraram para fazer isso foi usar a estética e tropes dos filmes de ficção científica/aventura/terror dos anos ’70 e ’80 como formato, como blueprint, para depois sobre ele contarem uma história de uma forma extremamente moderna e artística. Stranger Things consegue recuperar o tom de fantasia, aventura e terror que estiveram presentes na minha infância e no entretenimento que compunha a minha infância, destilar dessas obras originais as ferramentas e elementos que faziam com que funcionasse e se tivesse tornado tão popular, e reconstruir tudo isso numa obra que consegue apelar ao adulto que evoluiu dessa infância, mas que já tem anos e anos de cinema e cinismo às costas.
Quero mais.
Quando acabei de ver a temporada até me deu vontade de chorar ! Excelente crítica! Concordo e acrescento que, senti que tambem há um certo tom e umas certas referências de obras de John Carpenter que são tocadas na série de uma forma muito subtil. The Thing, Halloween, The Prince of darkness.. Mas eu sonhei tanto por uma série assim!
Quando acabei de ver a temporada até me deu vontade de chorar ! Excelente crítica! Concordo e acrescento que, senti que tambem há um certo tom e umas certas pistas de obras de John Carpenter que são tocadas na série de uma forma muito subtil. The Thing, Halloween, The Prince of darkness.. Mas eu sonhei tanto por uma série assim!