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A 6 de Novembro de 2017, Devin Kelley, um ex-membro das forças armadas americanas, usou uma espingarda Ruger AR-556 para matar 26 pessoas numa igreja no Texas. Kelley tinha antecedentes de violência doméstica pelos quais foi expulso das forças armadas, mas apesar disso foi capaz de comprar uma espingarda semi-automática, com a qual matou a sua sogra, e 25 outros membros da congregação, porque estava obcecado com uma disputa doméstica. Foi o 5º massacre mais mortífero das últimas décadas nos EUA. O número 1 dessa lista aconteceu apenas 1 mês antes, a 1 de Outubro de 2017, quando um atirador disparou sobre uma multidão que estava a assistir a um concerto, matando 58 pessoas.

Há séries que têm o condão de cair exactamente na altura em que são mais socialmente relevantes, e é difícil pensar num melhor exemplo do que O Justiceiro, a mais recente série da Marvel/Netflix, que estreou a 17 de Novembro de 2017. O Justiceiro conta a história de Frank Castle (Jon Bernthal), um ex-marine que depois do seu terceiro destacamento no Afeganistão, onde se envolve em operações ilegais, regressa a casa com stress pós-traumático. Quando a sua família é tragicamente assassinada pelos mesmos homens que o comandaram, Frank Castle inicia uma guerra de um só homem contra os criminosos que ele acredita serem responsáveis.

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O destrinçar da conspiração que está por detrás do assassinato da sua família é o principal enredo de O Justiceiro, à medida que vemos Frank Castle obsessivamente e violentamente matar o caminho todo até à verdade. A narrativa de Castle é tudo menos linear, e põe-no em situações com imensa ambiguidade moral, onde a sua obsessividade o leva a tomar decisões que definitivamente não o pintam como herói. Em vez disso a série sai do seu caminho para mostrar como ele magoa, brutaliza, intimida e manipula as pessoas que o estão a ajudar; frequentemente sai do seu caminho para matar inimigos que noutros contextos e noutras séries estaríamos habituados a ver o herói poupar.

Não é fácil gostar de Frank Castle, e seria fácil confundi-lo com um herói só porque ele é o protagonista da série e é aí que habitualmente encontramos o herói. No entanto a série caracteriza de uma maneira brilhante o sofrimento emocional constante em que vive a personagem. Há imensas sequências e momentos da série em que percebemos a extensão do trauma que ele sofreu, dos pesadelos e flashbacks constantes que ele vive. A série não desculpa ou glorifica as suas acções, mas em vez disso mostra-nos todos os factores que as justificam, e faz-nos compreender como seria possível ele chegar lá. É uma maneira muito inteligente de criar empatia por uma personagem tão flagrantemente anti-heróica. A interpretação de Jon Bernthal é perfeita para o seu papel. Apesar de a sua personagem não ter uma grande amplitude de expressão dramática Bernthal faz uma interpretação extremamente intensa e surpreendentemente subtil.

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O mistério da conspiração está muito bem construído e é muito satisfatório ver o Frank Castle a progredir lentamente, violentamente, mas inevitavelmente, para a sua resolução final. É definitivamente a série mais violenta da Marvel até agora, e essa violência vai escalando, tornando-se progressivamente mais brutal, sangrenta e agressiva para os sentidos. Há momentos definitivamente difíceis de se verem, mas não são demasiados ao ponto de se tornarem gratuitos, e os mais brutais são muito merecidos. As séries da Marvel/Netflix costumam ter excelentes vilões e O Justiceiro não é excepção.

Não vou falar muito da personagem ou do actor que a interpreta, porque isso seria um spoiler para a série, mas quero dizer que é uma subversão muito interessante ao trope comum do Big Bad e do seu Dragão que faz o trabalho sujo. A conspiração é por vezes convoluta, no entanto; há alguns pontos de enredo que se poderiam considerar supérfluos, e isso acaba por fazer sofrer um pouco o ritmo da série, que nos primeiros episódios demora a arrancar. Isso não é necessariamente uma coisa má, mas sinto que a narrativa se estica demais em certos momentos, tentando encher mais episódios para o conteúdo que tem.

Para além da jornada de vingança pessoal do próprio Frank Castle, que serve como tecido conjuntivo da série, há outros sub-enredos paralelos muito interessantes. Temos a história de Micro, o parceiro forçado de Castle, que é um ex-analista da NSA, que também foi atacado por estar a descobrir mais do que devia, e tem de convencer a sua família que morreu para a proteger. A narrativa de Micro é muito reminiscente de clássicos dos anos ’90 como Teoria de Conspiração (1997) e Perigo Público (1998), focando-se imenso na vigilância abusiva do estado, conspirações governamentais, e os génios paranóicos que conseguem fugir ao sistema.

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Adorei a caracterização de Micro, que é mostrado como um enorme nerd, paranóico, depressivo, mas muito humano. Ebon Moss-Bachrach dá-nos uma interpretação muito honesta e muito gostável para o que poderia ter sido apenas uma personagem secundária genérica. Gostei em particular do facto de ele nunca ter um momento badass; evita activamente o que quer que o ponha em perigo, as suas decisões são sempre muito racionais, e quando salva o dia fá-lo recorrendo à sua inteligência. Outro aspecto muito interessante da narrativa de Micro é a amizade relutante que ele desenvolve com Frank Castle, e a maneira como se relacionam com a família de Micro: Frank Castle acaba por se ligar à família de Micro como maneira de se re-humanizar, e Micro interage com a sua família por intermédio de Castle.

Há o sub-enredo envolvendo a personagem Dinah Madani, uma agente da Homeland Security de origem iraniana. Para além do interesse óbvio da personagem ser iraniana (viva a representatividade), o seu enredo é obviamente inspirado nas narrativas presentes em Segurança Nacional, o que faz todo o sentido. Os ambientes, complicações e reviravoltas da sua investigação à conspiração militar na qual o Frank Castle está embrulhado lembram a todos os passos de Carry Mathison, incluindo o velho mentor ambiguamente judeu. Até mesmo esta personagem, muito competentemente interpretada por Amber Rose Revah, acaba por ter um desenvolvimento surpreendente e muito intenso à medida que os seus princípios e crenças vão sendo postos em questão por cada nova corrupção ou camada de conspiração que ela descobre.

O meu sub-enredo preferido é, no entanto, e sem sombra de dúvida, o deu Lewis, outro veterano de guerra com stress pós-traumático. Lewis, fantasticamente interpretado por Daniel Webber, é basicamente a versão realista de Frank Castle. Também ele um veterano do Afeganistão, depois do seu destacamento regressa a uma América na qual ele já não se sente integrado, e que não lhe reconhece o valor do sacrifício que ele fez pelo seu país. Lentamente vemo-lo ser consumido pelo seu stress pós-traumático, adoptando comportamentos progressivamente mais desligados da realidade e violentos, a ir a grupos de apoio que não lhe dão o que ele precisa, e a ser manipulado por outros radicais que apregoam a violência contra o governo.

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O trajecto de Lewis é extremamente trágico, e é impossível não sentir uma empatia enorme pelo destroço de ser humano em que ele acaba por se tornar. A sua personagem levanta toda a questão da doença mental e do direito de possessão de armas, que acaba por ser explorada de outras maneiras durante a série, nomeadamente pela personagem de Karen Page (Deborah Ann Woll) que é pró-armas. O sub-enredo de Lewis é o que se cruza menos com o enredo principal, e eu compreendo que isso seja um problema; teria sido bom vê-lo interagir mais com outras personagens principais ou ter mais impacto no enredo principal. Apesar disso acho que o facto de ele passar tanto tempo isolado traz imenso relevo à normalidade da existência de pessoas como estas que existem pelos EUA.

Finalmente, a série está muito bem realizada. Se por um lado temos sequências de acção e violência fantasticamente coreografadas e filmadas, extremamente excitantes e intensas, fazendo lembrar por exemplo John Wick (2014), por outro lado há sequências oníricas, artísticas e de intimidade emocional e ternura que nunca parecem despropositadas.

O Justiceiro é uma das melhores séries da Marvel/Netflix até agora, com caracterizações de personagens extremamente bem feitas, um enredo complexo e satisfatório, e muito bem filmada. Apesar de ter alguns problemas de ritmo, e algumas linhas narrativas que podiam estar mais bem integradas, esta história consegue fazer uma exploração honesta e muito interessante de questões sócio-políticas extremamente actuais e relevantes como a doença mental, o desenquadramento dos veteranos de guerra, o direito à posse de armas e a vigilância abusiva dos governos.

Ah, e também é uma série de banda desenhada.

Achas que o cidadão comum devia poder comprar e possuir armas?