Eu tive uma sorte imensa no que toca a Star Trek. Uma das poucas vantagens de ter crescido com acesso a apenas dois canais de televisão (RTP1 e RTP Açores) durante imensos anos é que vi imensas repetições de séries antigas (porque a RTP Açores não tinha orçamento para as mais novas) e à custa disso acabei por ver quase todo o Star Trek (1966-1969) original entre os meus 6-10 anos. Foi definitivamente uma das minhas experiências televisivas formativas mais importantes, e ver aquela série icónica pela primeira vez, sem nenhum tipo de contexto, numa idade em que as influências são tão importantes, moldou a minha personalidade e os meus gostos.
Claro que na altura não me apercebia de quão ridícula aquela série era. Não me apercebia de que eles estavam todos vestidos de pijama, que a música do genérico parecia a do Love Boat, não me apercebia de quão canastrão o William Shatner era ou de que o icónico “Beam me up, Scotty” surgiu apenas porque eles não tinham orçamento para criar uma nave para os levar aos planetas. Ficou-me apenas a sensação de aventura e descoberta que movia a série, as histórias de ficção científica muito inovadoras para a altura, e por causa disso terei sempre um lugar muito especial no meu coração para Star Trek.
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É absolutamente desnecessário alongar-me explicando o fenómeno cultural e fandom que Star Trek gerou ao longo dos anos, rivalizado apenas por Star Wars. É muito mais interessante olharmos para as suas paródias, as quais houve muitas ao longo dos anos. Esses aspectos mais tolos da série original, como os pijamas, os capitães canastrões, a tripulação composta por alienígenas, as aventuras espaciais, foram alvo de imensas sátiras e paródias, muitas pelo Saturday Night Live, Simpsons e Family Guy, passando pelo genial Galaxy Quest (1999), e acabando com o “USS Callister”, o primeiro episódio da mais recente temporada de Black Mirror.
Foi por isso que não fiquei particularmente surpreendido quando descobri que ia haver uma nova série de paródia ao Star Trek escrita pelo Seth MacFarlane, chamada The Orvillle. Os primeiros trailers da série prometiam exactamente esse tom satírico, a parodiar os aspectos mais ridículos do original, e vendiam uma série irreverente com o género de humor que conhecíamos de Seth Macfarlane.
Esses trailers mentiam. E isso não é uma coisa má.
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Eu comecei a ver The Orville esperando um tom de paródia e desconstrução constante, com muitas piadas ordinárias e exageradas pelo meio. Honestamente quem é que esperaria uma coisa diferente de Seth MacFarlane? Acho que foi por isso que ao início me senti tão confuso e até desiludido ao ver os primeiros episódios da temporada, que não eram de todo aquilo que me tinha sido vendido. Em vez da barragem constante de one-liners, cinismo e poop-jokes que eu esperava, é-me dada uma série de aventuras espaciais na qual há mais aventura e enredo e narrativa do que piadas. Pior, lentamente fui-me apercebendo que Seth MacFarlane estava a fazer uma série de sci-fi honesta, sem uma ponta de ironia no seu amor pelo material original, algo que encrespou as minhas sensibilidades cínicas de millenial.
E é sobretudo isso que se sente nesta série. Há imenso amor pelo Star Trek original. Um amor genuíno que se sente em cada episódio, cada diálogo, cada cenário, cada aventura. Mais do que tentar reinventar ou parodiar o Star Trek original, Seth MacFarlane tenta criar a sua própria série de ficção científica espacial com base exactamente nos mesmos tropes e linguagem de escrita do original. Isso levanta um problema, que é o de que Seth MacFarlane, apesar de ter uma longa carreira de comédia de sketches, não tem necessariamente experiência a escrever enredos e narrativas de aventura. Essa inexperiência nota-se por vezes; há vários episódios onde se nota que o ritmo não é grande coisa, onde a narrativa aparece um bocado desconjuntada, ou por introduzir demasiados elementos que acabam por não ter impacto, ou por se arrastar previsivelmente por um enredo que já vimos duas dezenas de vezes.
No entanto, no que toca a recriar a sensação de ver Star Trek, The Orville é um sucesso. Não só pelo próprio formato da série, que tem uma estrutura narrativa episódica, ou pelos cenários e set-pieces que inclui, as aventuras da tripulação da Orville transmitem sempre aquela sensação do “to explore strange new worlds, to seek out new life and new civilizations, to boldly go where no one has gone before“.
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Isto talvez não seja surpreendente, se nos lembrarmos que Seth MacFarlane foi também produtor executivo de Cosmos, a série de ciência de 2014 apresentada por Neil Degrasse Tyson. The Orville pode não ter o rigor científico de Cosmos, mas tem definitivamente a mesma sensação de maravilhamento e deslumbramento perante o espaço e universo. Nota-se que a série não teve propriamente um orçamento muito grande, há vários cenários e efeitos especiais que são um bocadinho baratinhos, mas quando toca a mostrarem cenas espaciais, estrelas, planetas, buracos negros, dimensões paralelas, a série é deslumbrantemente bonita, e um gosto de se ver.
E lembras-te de quando nem tudo era cinismo e ironia e distopia? Antes de o futuro ser quase invariavelmente um mundo de sujidade, corrupção, governos opressivos e corporações desumanisantes? (eu culpo o Blade Runner). Lembras-te do futuro pós-escassez, pós-capitalismo, pós-racismo que nos era mostrado no Star Trek original? The Orville volta a dar-nos uma visão optimista do futuro, no qual a humanidade conseguiu ultrapassar os seus problemas, e pode agora dedicar o seu tempo a explorar o espaço e a ajudar outras civilizações.
Apesar desta visão optimista, e como qualquer boa obra de ficção científica, The Orville aproveita as suas aventuras para fazer um comentário social que consegue ser extremamente actual. Há episódios sobre identidade de género e transsexualidade, episódios sobre relativismo cultural, episódios sobre a prevalência da opinião pública sobre factos científicos, episódios sobre a influência da religião na mente das pessoas. Não são todos igualmente bons, a série não toma uma posição clara em todos os temas, mas eles estão lá, e são adequadamente controversos e geradores de discussão.
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Outra grande força da série está nas suas personagens. A tripulação da nave é composta pelo Capitão Mercer (Seth MacFarlane) pela sua 1ª Oficial a Comandante Kelly Grayson (Adrianne Palicki) e um conjunto de outros oficiais, pilotos e médicos muito coloridos e interessantes. Contrariamente às aventuras que têm narrativas episódicas, há vários sub-enredos relacionados com cada uma das personagens que se desenvolvem de episódio para episódio. Em vez dos típicos dramas e conflitos que por vezes parecem forçados noutras séries deste género, The Orville foca-se em vez disso nos problemas mundanos e vivências pequenas do dia a dia destas personagens.
A série passa imenso tempo com as personagens quando estas não estão envolvidas em aventuras, só a socializarem, a conversarem, a jogarem jogos, a beberem (toda a gente bebe muito) e a resolverem as suas próprias vidas. E são todas surpreendentemente razoáveis, tomam decisões racionais e têm reacções que parecem normais. Isto não é exactamente o género de coisa que gera muito drama, mas funciona extremamente bem para criar personagens muito realistas e por quem é fácil desenvolver empatia.
Portanto, apesar de haver vários episódios que não conseguem funcionar particularmente bem, e apesar de eu chegar ao fim ainda a querer mais poop-jokes, The Orville é talvez uma das séries mais originais do ano, feitas com mais amor e dedicação, com algumas ideias verdadeiramente desafiadoras, e que vai definitivamente agradar a fãs de ficção-científica, e especialmente àqueles que, como eu, tiveram a sorte de crescer com Star Trek.