Este artigo contém spoilers!
“Mais um jogo de tiros e soldados da fortuna” – seria uma descrição horrível, na minha opinião, para descrever Spec Ops: The Line. Na realidade, este videojogo é como que uma pequena caixa de surpresas, especialmente por se apresentar como um shooter em terceira pessoa normalíssimo (a oitava entrega da série Spec Ops), mas que ao avançarmos na história percebemos que talvez as aparências possam iludir.
Quando joguei este videojogo (publicado em 2012 pela 2K Games) não sabia absolutamente nada acerca dele, pois tinha saído há pouco tempo e o buzz à volta não era o que é hoje. Pessoalmente gosto bastante da fórmula: “dá porrada nos vilões, mata o mauzão e salva a miúda”. E assim que começamos o videojogo, somos logo colocados num helicóptero sob fogo e temos de disparar contra tudo o que se mexe, há uma tempestade de areia e o nosso helicóptero despenha-se.
Assim que o videojogo começa (flashback para antes do acidente) somos colocados na pele do Capitão Martin Walker (parece-nos um típico soldado, determinado a seguir as suas ordens e a cumprir a sua missão) que é acompanhado pelos seus dois companheiros de esquadrão, Tenente Adams (determinado a seguir o seu líder) e Sargento Lugo (determinado a contar umas piadas ao longo do videojogo). Estes três são a Delta Force e a sua missão é salvar John Konrad (que tinha salvo a vida de Walker numa guerra anterior em Kabul) dum Dubai devastado pelas tempestades de areia.
Simples? Parece. Apenas nada corre de acordo com os planos de Walker, pois assim que chegam ao Dubai são confrontados com vários insurgentes que os atacam. Walker começa a aperceber-se que Konrad, juntamente com a sua equipa (os 33rd), tornara-se instável ao longo dos vários meses que passaram antes da chegada da Delta Force e que além disso tinha declarado lei marcial sobre a cidade, refugiando-se num hotel. O enredo é bastante complexo e as personagens são bem trabalhadas, nunca havendo um momento “parado”, emboscadas, explosões, tiroteios com fartura, dilemas morais e até agentes secretos da CIA à mistura.
“Bem-vindos ao Dubai Cavalheiros” – Konrad
A jogabilidade também é bastante razoável, não tem muitos aspectos fora do normal no tipo de videojogo que se enquadra, mas achei as mecânicas divertidas. Apenas o multiplayer fica um pouco desenquadrado, pois se calhar faria sentido se estivesse a competir com videojogos como Call of Duty, mas este Spec Ops não é para ser visto como um videojogo de tiros, ele é muito mais do que isso, é uma experiência diferente. Mas muitas vezes os desenvolvedores de videojogos têm de se submeter à pressão das grandes empresas.
Geralmente este tipo de videojogos costumam ter personagens com um certo código de moral, um código de herói e aquela sensação de que a personagem que estamos a controlar é quase invencível e que vamos vencer o mal. Mas Walt Williams (escritor principal) tinha uma ideia diferente. Ele queria aprofundar a parte narrativa que estes típicos videojogos sobre guerra não costumam abordar, pois quando olhamos para outros tipos de arte como música, cinema ou mesmo livros, reparamos que são géneros de arte que nos transmitem sensações ou emoções como tristeza ou raiva enquanto que nos videojogos isso não acontece com frequência.
Mas Spec Ops: The Line consegue mexer connosco ao colocar-nos várias opções morais ao longo do nosso percurso e ao invés de fazer o típico, “carrega A para algo bom, carrega B para algo mau”, Spec Ops: The Line larga-nos a mão e deixa-nos a sós para decidirmos duma maneira mais narrativamente fluída se aquilo que vamos fazer é mau ou bom. Já agora, ao contrário do normal, após cada escolha não somos avisados se fizemos bem ou mal, ou não “desbloqueamos” nenhuma recompensa, apenas tomamos a nossa decisão e temos de viver com ela até ao final do jogo.
Um exemplo seria quando o esquadrão separa-se e Lugo é atacado por alguns aldeões e colocado numa forca, o jogador ao salvar Lugo vê-se depois rodeado de pessoas revoltadas que o cercam e que se aproximam cada vez mais insultando e atirando pedras, instintivamente disparei contra elas para que me deixassem em paz, mas ao jogar uma segunda vez disparei para o ar e elas fugiram na mesma sem que tivesse que as matar.
Uma cena que me marcou em concreto e que não depende do jogador é quando Walter dispara um morteiro de “fósforo branco” sobre um grupo de inimigos para puder chegar mais perto de Konrad. E ao atravessarmos esse mesmo espaço damos conta que afinal eram só soldados do 33rd que estavam a proteger refugiados que não tinham mais para onde fugir, pois Walker tinha destruído tudo à sua passagem. Quase dá para sentir a amargura de Walker ao ver dezenas de inocentes queimados vivos, quase dá para sentir o cheiro juntamente com os berros de sofrimento e a sua sanidade cada vez mais a desfazer-se ao perceber da inutilidade do seu esforço apenas para salvar o homem que uma vez o salvou a ele.
Entre vários delírios e alucinações ao longo de Spec Ops: The Line, a nossa personagem mantém-se fiel à sua missão e nem a morte dos seus companheiros o impede de prosseguir, até que finalmente chega ao hotel e dá de caras com Konrad, morto. Sempre que Walker ouvia a voz de Konrad pelo rádio que “encontrara” (rádio esse avariado, como vemos no final), eram apenas alucinações, pedaços da sanidade dele que se desfaziam ao mesmo tempo que o seu “código de honra” se desfazia também. Ele, que tanto se esforçara para ser um “herói”, leva com uma chapada de luva branca duma última alucinação de Konrad que o faz ver todo o mal que ele fez (inclusive as escolhas do jogador) e que Walker não era melhor do que ele só porque não sabia admitir os seus erros.
Existem vários finais para Spec Ops: The Line. Um deles é logo nesta cena, onde Walker encontra-se em frente a uma janela onde vislumbramos o reflexo de Konrad a dizer que o vai matar, quando na verdade é a personagem que tem a pistola apontada à própria cabeça. Se evitarmos o suicídio, Walker utiliza um rádio para lançar um pedido de evacuação que chega passado algum tempo. Os soldados ao chegarem, reparam que ele tem a roupa de Konrad vestida e que não se encontra bem, existindo assim três opções: atacamos os soldados e saímos impunes, atacamos os soldados e morremos, ou simplesmente entregamos a nossa arma e vamos “para casa”.
Há algo que reparei ao jogar várias vezes Spec Ops: The Line. Antes das cutscenes “normais” existe um fade to black enquanto que nas alucinações de Walker os cortes são fade to white. Não sei se será de propósito e já vi que algumas pessoas repararam no mesmo. Isso só confirmaria a minha teoria de que a cena onde vemos Walker a ir embora com os soldados no final (que tem um fade to white) seria apenas uma ilusão. E que o “verdadeiro” final deste videojogo é com a morte dele, quer pela própria mão ou à mão de terceiros.
O que faz sentido, visto que os videojogos só acabam quando matamos o mau da fita… E se o mau da fita tivéssemos sido nós, o videojogo inteiro? O subtítulo do videojogo é “The Line” e tal como Konrad diz num dos seus discursos: “Não podemos ir para casa. Há uma linha que homens como nós têm de atravessar. Se tivermos sorte, fazemos o que é necessário e aí então morremos.”