Adoro a Rosa Lobato de Faria de uma maneira que não consigo explicar – às vezes é como se ela conseguisse entrar dentro da minha cabeça, retirar de lá coisas que eu não sabia que existiam. Os livros desta autora atendem às nossas mais obscuras curiosidades e mais sinceras qualidades, desde o deprimente e enaltecedor (como em Romance de Cordélia, de 1998) ao sinceramente bizarro (como A Flor do Sal, de 2005). Este maravilhoso pequeno livro, editado pela primeira vez em 2007, está algures pelo meio.
Rosa Lobato de Faria nasceu a 20 de Abril de 1932, e, lamentavelmente, faleceu a 02 de Fevereiro de 2010. Para além de romancista, foi também guionista, contista, poetisa, actriz, dramaturga e letrista de canções. São da sua autoria quatro músicas vencedoras do Festival RTP da Canção: a famosíssima “Amor de Água Fresca”, “Chamar a Música”, “Baunilha e Chocolate”, e “Antes do Adeus”. Foram também escritas por ela várias séries e novelas, incluindo a sitcom Humor de Perdição, de 1987, e Tudo ao Molho e Fé em Deus, de 1995, entre outras. Participou como actriz em séries muito conhecidas, como o Inspector Max, Uma Aventura, e a novela Deixa-me Amar da TVI. Foi, porém, como romancista que mais se consagrou, deixando-nos uma série de obras incontornáveis.
O romance que escolhi para esta crítica tem como protagonista uma personagem real, ainda que maioritariamente desconhecida, da História de Portugal. Se bem que a maior parte do enredo tenha saído exclusivamente da imaginação da autora, existem vários pormenores históricos verídicos: a infância pacata que Gonçalo Enes passou na aldeia algarvia de Bensafrim, a sua amizade com Pero de Évora, e a descoberta que ambos estes aventureiros portugueses fizeram das grutas de Tassili N’Ajjer, na Argélia, um local arqueológico de grande importância. Na linha divisória entre a veracidade histórica e a especulação fantasiosa, encontramos os pontos fulcrais desta estória. Gonçalo nutre desde a infância um fascínio pela estrela Sirius, a estrela mais brilhante do céu nocturno. A sua estrela, em conjunto com as oportunidades de viagem e aventura criadas pelos Descobrimentos, levam Gonçalo a querer partir em direcção ao mar e ao desconhecido. Há, porém, assuntos do coração que o impedem de partir – órfão de pai, Gonçalo é a única ajuda da sua mãe, e está apaixonado por uma rapariga da sua terra. A relação que se desenvolve entre eles é mesmo ao estilo de esta escritora: uma explosão do puramente físico que leva eventualmente ao romântico, ao espiritual.
Leitura rápida e apaixonante, com temas profundos explorados de uma maneira leve, num ambiente histórico envolvente, pincelado com personagens credíveis.
As descrições de Rosa Lobato de Faria não respeitam limites convencionais. Mas Balbina é filha de um talhante (uma muito respeitável profissão) com ambições, que a prometeu em casamento quando esta era criança a um homem rico seu amigo. Esta vê-se casada com um homem muito mais velho. É aqui que começa a aventura do nosso Gonçalo. Parte à descoberta, parte à guerra, e os seus passos levam-no para terras distantes. Ele vive muitas vidas diferentes; juntamente com o seu amigo Pero de Évora, têm que fingir ser quem não são, e descobrir que são quem não pensavam ser, de modo a sobreviver nas suas incursões em terras mouras enquanto tentam descobrir o caminho para as lendárias riquezas que o mítico continente africano possui. Descobrem, eventualmente, algo muito diferente – a gruta de Tassili N’Ajjer, que só foi redescoberta no século XIX, tendo a sua maravilhosa arte rupestre enfeitiçado o mundo desde então.
Já li em várias críticas que este livro é simplista. Está, de facto, contado de uma maneira simples e acessível, cheia de simbolismos secretos como é o hábito desta autora, mas os temas nele contidos jamais podem ser vistos como simples. O dilema religioso, espiritual e profundamente humano de Gonçalo é algo que vemos repetido em tudo à nossa volta; todas as suas escolhas, nenhuma delas errada e nenhuma delas correcta, levam-no a uma série de becos sem saída, ao eventual desfecho de uma vida que para ser aproveitada ao máximo de uma maneira não o foi de nenhuma outra. O tema central, que, para mim, é o do desejo de partir à descoberta, a sensação de claustrofobia de permanecer num sítio durante demasiado tempo, foi muito bem explorado.
O conflito religioso entre cristãos e muçulmanos também não ficou por abordar – enquanto que procuram manter-se fiéis à sua religião, Gonçalo e Pero acabam por encontrar uma miríade de personagens que provam que as barreiras religiosas não têm influência no carácter. Os seus pecados também são reveladores – quantas destas regras religiosas fazem sentido quando as tiramos da teoria e as levamos para o mundo real, no qual os homens têm não só que sobreviver mas também que viver? A personagem principal vive vários romances tórridos com vários tipos de mulheres, desde aquelas que exigem tudo até àquelas que não pedem nada. Estas aventuras românticas de Gonçalo, assim como os muitos horrores da vida de Balbina (o símbolo perfeito da diferença entre as vidas dos homens e das mulheres nesses tempos arcaicos – enquanto uns descobrem o mundo, outras definham no encarceramento), acabam por aproximá-los mais e mais enquanto mais os afasta a geografia. Todo o romance tem um ambiente geral de realismo, apesar de ter sido escrito num regime bipartido – é metade livro de aventuras, metade crónica da vida normal das mulheres na serra algarvia. O final, que obviamente não vou contar, surpreendeu-me imenso.
Adorei este livro, e recomendo-o a quem quiser uma leitura rápida e apaixonante, se bem que por vezes incrivelmente frustrante!