O Ciclo de Hainish é o conjunto dos livros e relatos de ficção científica da autora norte-americana Ursula K. Le Guin, escritos entre finais da década de 1960 e 2002. Os livros não seguem uma ordem cronológica nem de nenhum outro tipo, são histórias independentes, mas que transcorrem dentro de um Universo muito particular. Quer dizer, o Universo é o nosso, o de sempre, mas ele tem uma história.
Há milhares de anos, a civilização do planeta Hain, tecnologicamente avançada, colonizou muitos planetas, nos quais as condições atmosféricas e a existência de água permitiam a vida da espécie humana (sim, os hainish, habitantes de Hain, eram humanos). Onde já existia alguma forma de vida inteligente os hainish, por motivos que desconhecemos, modificaram-na usando engenheira genética. Talvez para que as espécies se adaptassem melhor ao trabalho que os hainish esperavam delas, ou simplesmente como cobaias de um experimento social ou sexual, como algumas das histórias nos fazem suspeitar.
Onde não existia nenhuma forma de vida inteligente, os hainish criaram colónias de escravos trazidos de outros mundos que foram, aos poucos, povoando esses planetas, sempre sob vigilância e controlo da metrópole. O objectivo variava segundo o que cada planeta colonizado podia oferecer: matérias-primas, minerais, metais, alimento, campo para experimentação científica, bases para reabastecimento das naves, etc.
Já adivinhaste? Sim, a nossa Terra era um destes mundos colonizados e explorados pelos hainish. Nada disto sabemos com certeza, vamos desvendando aquele passado longínquo, comum a todos os mundos habitados, à medida que avançamos na leitura dos livros e relatos breves que fazem parte deste Ciclo.
Como tudo o que começa tem de acabar, a Civilização Hainish colapsou e os muitos mundos por eles colonizados ficaram, de repente, abandonados à sua sorte no vasto universo. Cada um desses mundos adaptou-se como pôde à nova e inesperada situação, os seus habitantes criaram diversas formas de organização social e de exploração e reparto dos recursos naturais. Explicações para a súbita ausência dos amos foram inventadas e propagadas entre a população que, entretanto, continuou a multiplicar-se.
Centos, milhares de anos passaram e nos mundos mais atrasados aquelas antigas explicações foram transformando-se em mitologia, em religião ora oficial (usada como legitimação pelos que detêm o poder) ora subversiva (dos submetidos que esperam a redenção e a liberação) Os protagonistas de aqueles tempos tão remotos transformaram-se em deuses e heróis. Os seus textos, escritos para tentar organizar o caos, são agora textos sagrados e não se discute a sua veracidade.
Já deves ter adivinhado também que a nossa Terra é um daqueles mundos tecnologicamente atrasados na altura do colapso da civilização Hainish..
Outros mundos, que na altura do colapso de Hain conservaram e aproveitaram alguma daquela tecnologia, têm continuado a avançar e lá para o ano 2300 do nosso calendário terrestre atingem um nível que possibilita novamente as viagens espaciais numa velocidade cercana à da luz. Nomeadamente são os planetas habitados da constelação Cetus, cuja estrela Tau Ceti é bastante semelhante ao nosso Sol.
Os cetianos, portanto, começam novamente a estabelecer contactos com os mundos habitados mais próximos deles, mundos que partilham uma origem comum mas que evoluíram isolados entre sim e de maneira muito desigual. Mundos talvez completamente esquecidos da sua origem, tão diferentes na sua cultura, aspecto físico, costumes, tradições e crenças como os seres humanos somos capazes de ser. Tão basicamente iguais, tão profundamente diferentes.
É neste futuro, condicionado por aquele passado comum, onde transcorrem as histórias que os livros nos contam. Não há neles o clássico alienígena dos filmes, aquele de quem sabemos à partida que não é “um de nós”, é o inimigo, o invasor que vem para nos destruir. No fantástico livro A Mão Esquerda das Trevas (1969), por exemplo, o alienígena é um terrícola, e a sua visão condicionada pela cultura terrestre impede-lhe de interpretar correctamente a cultura desse planeta, chegando a pôr em perigo a sua missão e a sua própria vida.
Tem-se dito que a ficção científica de Le Guin é “soft”, talvez porque não aparecem nela monstros devoradores ou esquadrões de ovnis a destruir cidades. A mim não me parece nada “soft”, muito pelo contrário, há nesses relatos uma galeria de horrores que identificamos imediatamente como muito humana: há ditaduras e revoluções, violência, tortura, prisão e morte, ganancia, mentiras, sede de poder, medo ao desconhecido e a quem é diferente.
O herói dos livros de Ursula Le Guin (se é que queremos dar a alguém esse improvável título) não é um valente guerreiro musculado e cheio de armas prodigiosas. É um cientista, um viajante, um descobridor, um diplomata. A sua motivação é a sede de conhecimento, a necessidade de partilha, a curiosidade fundamental que nos impulsa a sair do nosso canto e nos lança ao desconhecido, à procura do “outro” só para descobrir que ele é, na sua abismal diferença, igual a nós.
Os temas que atravessam estas histórias, temas característicos dos anos 60 e 70 (racismo, xenofobia, feminismo, ditadura, revolução, anarquia, utopia) continuam hoje em dia espantosamente vigentes. As histórias e conflitos destes mundos e dos seus habitantes são actuais e pertinentes.
Queres saber por onde começar? Fica aqui uma pequena explicação da estrutura temporal da saga, uma cronologia e uma proposta de leitura para mergulhar no Ciclo de Hainish, embora como bem disse a própria autora: isto não é uma saga organizada! Podes começar pelo livro que primeiro te caia nas mãos, garanto-te que vais adorar.
Como vimos mais acima, por volta do ano 2300 do actual calendário terrestre, os cetianos iniciam uma série de contactos interplanetários que se vão estendendo e multiplicando. Estes contactos dão-se em duas fases bem diferenciadas. Na primeira fase assistimos à fundação da Liga dos Mundos. Em Os Despojados (1974) esta Liga ainda não existe mas já se fala em nove “mundos conhecidos”. Em A Cidade das Ilusões (1967) a Liga dos Mundos existe e tem mais de oitenta membros. Uma guerra de alguns mundos rebeldes contra esta Liga é o ponto de partida de O Mundo de Rocannon (1966). Na segunda fase existe o Ekumen, uma federação intergaláctica que visa integrar os mundos habitados por seres humanos com o objectivo de partilhar conhecimentos e informação.
Como se vê logo, os livros não foram escritos cronologicamente. A própria autora, declaradamente anarquista e taoista, tem referido que a sua intenção não era escrever uma saga, que escreve como lhe vai apetecendo, e que inevitavelmente vamos encontrar algumas descontinuidades e até contradições entre um livro e outro. Embora não tenham sido escritos como uma saga, a lógica interna das histórias faz com que seja possível organizar cronologicamente sete livros do Ciclo de Hainish. Esta lista serve como guia de leitura se quiseres seguir uma linha cronológica.
Título | Ano de edição | Ano terrestre | Ano da Liga | Ano do Ekumen |
---|---|---|---|---|
Os Despojados | 1974 | 2300 | ||
Floresta é o Nome do Mundo | 1972 | 2368 | 18 | |
O Mundo de Rocannon | 1966 | 2684 | 334 | |
Planeta do Exílio | 1966 | 3755 | 1405 | 376 |
A Cidade das Ilusões | 1967 | 4370 | 2020 | 991 |
A Mão Esquerda das Trevas | 1969 | 4870 | 2520 | 1491 |
O Dia do Perdão | 1995 | 5458 | 3108 | 2079 |
Os outros livros do Ciclo de Hainish não são fáceis de datar, contendo relatos de diferentes épocas e planetas, eles são:
- As Doze Moradas do Vento (1975)
- Um Pescador do Mar Interior (1994)
- O Relato (2000)
- O Aniversário do Mundo (2002)
Nem todos estes livros são fáceis de encontrar traduzidos ao português, por isso fiquei tão feliz com a recente reedição de Os Despojados pela editora Saída de Emergência! Faço figas para que os restantes livros da saga também sejam reeditados proximamente.
E como sonhar não custa nada… Algum dia até gostava de ver uma série inspirada no Ciclo de Hainish. Cada temporada um livro… Era tão, mas tão bom…! No entanto não vamos ter uma série baseada nesta saga mas sim vários filmes. A adaptação cinematográfica do livro Planeta do Exílio entrou em produção em Fevereiro deste ano.
E vai ser lançada uma série da Mão esquerda da Escuridão
Oi! Eu estou com muita vontade de começar a saga, o seu guia me ajudou muito!! O livro O mundo de Rocannon é vendido em sites portugueses, infelizmente aqui no Brasil é muito difícil de encontrar.