Enquanto que os Avengers andam a lutar contra invasores alienígenas, deuses maléficos e robots genocidas, a vida continua para as pessoas normais, que vão continuar a ser assaltadas por toxicodependentes, cujas drogas são traficadas por criminosos. Ninguém espera que o Thor venha com o seu martelo mágico impedir um assalto, ou que o Vision venha com a sua Pedra da Mente de poder galáctico desmontar um gangue que trafica drogas. Não, estes Deuses, com as suas projecções de energia e artefactos místicos, guardam-se para cataclismos que afectam o destino do planeta e põem em risco milhões de vidas.
Mas, de certa forma, esses problemas são fáceis. Não há dúvida nenhuma que é preciso intervir em força, porque as consequências são tão catastróficas se isso não acontecer. Mas, nos problemas pequenos, que acontecem nas ruas, que afectam a vida de uma ou duas pessoas de cada vez, e que por sua vez estão presos a milhares de outros pequeninos problemas e factores sociais e económicos, quem é que intervém? E com que autoridade moral? E com que consequências inesperadas?
É nesse tipo de problemas reais, essas ameaças constantes do dia-a-dia, que as séries da Marvel na Netflix se focam. São problemas pequenos, sujos e dolorosos, que afectam uma ou duas pessoas de cada vez. O destino do mundo não está em jogo, mas a vida de uma família pode ser destroçada. Ao passo que os filmes da Marvel se esforçam por criar épicos gigantes e transmitir-nos a sensação de que o mundo está em jogo, as séries Netflix conseguem reduzir imenso a escala e apontar um microscópio aos problemazinhos práticos e morais de se ser um super-herói.
A primeira temporada de Demolidor focava-se na moralidade da escolha de agir ou não, de intervir ou não nos problemas pequeninos. A personagem principal, o Matthew Murdock (Charlie Cox), debate-se com o papel de herói e põe em causa se o deve assumir ou não.
No início desta segunda temporada, esse problema já foi resolvido. Matt Murdock decidiu ser o Demolidor, e anda alegremente a pôr criminosos na prisão com um código moral estrito de não matar e de acreditar sempre que qualquer pessoa pode ser redimida.
Entra o Frank Castle.
Frank Castle (Jon Bernthal) é o reflexo negro de Demolidor, e acaba por receber a alcunha de Punisher, ou Justiceiro, no nosso país. O Justiceiro mata implacavelmente, sem hesitação, sem misericórdia e com uma eficiência assustadora. Apesar de matar apenas criminosos, não se coíbe de pôr inocentes em risco, ou de magoar qualquer pessoa que se atravesse no seu caminho. A sua existência, e sobretudo a sua eficácia, põem em causa tudo o que o Demolidor representa. Se por um lado o Justiceiro assume o papel de juíz, júri e carrasco, a verdade é que como ele próprio diz ao Demolidor, os criminosos que ele atinge já não se levantam mais.
Os paralelismos entre estas duas personagens são explorados tematicamente pela série, e são postos em causa mesmo pelas outras personagens dentro do universo. Tanto Foggy Nelson como Karen Page, os amigos e colegas de Matt Murdock, o confrontam com a validade das acções do Justiceiro, comparando-as às do Demolidor.
Quando a Firma de Advogados Nelson & Murdock se envolve com o caso do Justiceiro, vamos descobrindo realmente quão complexa é a personagem de Frank Castle. As suas motivações são profundamente humanas, o seu sofrimento é facilmente relacionável, e apesar de as suas acções serem criminosas e violentas, é impossível não sentirmos empatia pelo destroço humano em que se tornou Frank Castle.
Jon Bernthal constrói uma interpretação que é tanto intensa e brutal quanto é subtil, cheia de pequenos pormenores, trejeitos e olhares mínimos, que transformam uma personagem que é, à primeira vista, um assassino brutal e frio, num ser humano credível, com o qual conseguimos empatizar. E depois, vai matar brutalmente mais pessoas, e deixa-nos de novo com uma ambiguidade emocional tremenda, sem nos conseguirmos decidir se ele é um herói um vilão.
À medida que a série avança, Matt Murdock, Foggy Nelson e sobretudo Karen Page vão descobrindo a complexa trama de eventos e conspirações que levaram à génese do Justiceiro. As relações entre este trio de personagens vão-se tornando cada vez mais tensas, mais complicadas, sempre sob a sombra da vida dupla de Matt como Demolidor.
Não fosse pelo facto de sermos os espectadores e de sabermos das escapadas nocturnas do Demolidor, e de compreendermos o que ele faz e os dilemas morais em que se encontra, detestaríamos as suas acções como Matt Murdock, enquanto ele desilude sistematicamente os seus amigos mais próximos. O Demolidor pode ser um herói, mas Matt Murdock está longe de ser uma personagem simpática.
É sobretudo na vida pessoal do Matt Murdock que vemos o impacto das acções do Demolidor, mas também nas vidas destas duas personagens secundárias. Tanto Foggy Nelson (Elden Henson) como Karen Page (Deborah Ann Woll) vão sofrendo as consequências directas e indirectas da cruzada nocturna do Demolidor e, por causa delas, crescem como personagens, e esse crescimento ocorre de maneira perfeitamente orgânica, a partir do que lhes vai acontecendo. Mais importante do que isso, o seu crescimento não é meramente acessório, tem impacto no desenrolar da narrativa, e isso é sempre um sinal de muito boa escrita. Naturalmente, as interpretações de Elden Henson (Foggy) e Deborah Ann Woll (Karen) contribuem imenso para acreditarmos neste crescimento, e é uma pena que corram o risco de ser eclipsados pelas outras personagens principais da série.
Como a Elektra.
Elektra Natchios é uma ex-namorada de Matt Murdock do seu tempo da faculdade. É emocional, despreocupada, quase infantil na sua impulsividade, não olha a consequências, absolutamente segura nas suas decisões, muito sexual e muito brutalmente competente. É a personagem que arrisca trazer à superfície o pior de Matt Murdock.
A Elektra aparece nesta temporada como uma cliente de Matt Murdock, que rapidamente exige os seus serviços não como advogado, mas como Demolidor. Portanto, no meio de defender o Frank Castle, Elektra é quem desencaminha o Matt Murdock e o vai aliciando a envolver-se nos seus problemas sórdidos, deixando para trás o seu trabalho no tribunal.
Elektra é inicialmente uma personagem quase irritante, com o seu sotaque incaracterizável, a sua irreverência pueril, a sua aparente despreocupação com consequências e a sua capacidade de manipular o Matt Murdock que, por essa altura na série, nós só queremos que tenha uma boa noite de sono.
O Demolidor e a Elektra têm uma dinâmica extremamente interessante, sendo ambos extremamente competentes naquilo que fazem (porrada), mas pondo em conflito a política de não matar dele com a facilidade desconcertante com que ela o faz.
Se o Justiceiro é o desejo de justiça do Demolidor sem restrições morais, a Elektra é o seu desejo de se libertar dessas restrições morais.
A caracterização de Élodie Yung para esta personagem é também pouco menos que brilhante, porque à medida que o seu mistério se adensa, e vamos compreendendo mais do seu passado, também ela consegue transformar a Elektra arrogante, inconsequente e infantil numa personagem trágica, por quem acabamos a ter pena. Sem querer estragar-vos o desenvolvimento da personagem, digo apenas que a Elektra é uma excelente representação de um psicopata funcional, com tudo o que isso implica.
Finalmente, e no meio disto tudo, vemos Matt Murdock como uma personagem torturada pelas suas escolhas morais, pelo impacto que as suas decisões têm naqueles de quem gosta, e no deteriorar das suas relações pessoais.
A segunda temporada de Demolidor é sobre perda. Sobre a perda da normalidade e da humanidade que advêm da decisão de Matt Murdock se tornar no Demolidor.
Charlie Cox está perfeito no papel de Demolidor. A sua interpretação subtil, o seu tom de voz quase sempre calmo e composto, as suas explosões controladas de violência eficaz, o conflito que consegue espelhar sem exageros, é brilhante. Charlie Cox consegue fazer-me acreditar num homem cego que tem capacidades suficientes para derrotar grupos inteiros de bandidos, e consegue transmitir perfeitamente o cansaço e o desgaste, tanto físico como emocional, que isso provoca em Matt Murdock.
Com toda esta fantástica caracterização de personagens com crescimentos orgânicos e arcos narrativos extremamente bem contados, a segunda temporada de Demolidor começa a abrir a escala do mundo onde se insere.
A primeira metade desta temporada foca-se, quase exclusivamente, nos problemas criados pelo Justiceiro e o seu julgamento, mas durante a segunda metade é que descobrimos verdadeiramente a génese dos seus problemas. O mistério e a conspiração que envolvem o Justiceiro são demasiado bons para eu vos estragar. Resta-me dizer que a conspiração é muito maior e mais complicada do que inicialmente parece, e que a narrativa não vos segura a mão enquanto se desenvolve, exigindo atenção e raciocínio por parte do espectador.
A Elektra, por sua vez, abre portas para conflitos que são maiores do que Hell’s Kitchen e, quase sem darmos por isso, o Demolidor é atirado para uma conspiração centenária perpetrada por ninjas mágicos e monges místicos. O mais surpreendente é que estes aspectos mais fantasiosos da série não parecem deslocados ou bizarros. O mundo de Demolidor está tão bem construído, que não nos parece estranho quando surgem ninjas mágicos. Depois de vermos o Demolidor a lutar contra eles, isso é tão credível e acrescenta tanto à série, que percebemos que toda a construção prévia era propositada. Mais importante do que isso, a escala da série cresce. O mundo abre-se e começamos a ganhar noção da enormidade dos problemas que o Demolidor enfrenta.
Isto é naturalmente uma preparação para a série Defenders, que sabemos que vai unir o Demolidor à Jessica Jones, ao Luke Cage e ao Iron Fist, e como tal há muitas pontas narrativas que são deixadas soltas, com a intenção clara de serem apanhadas por temporadas subsequentes. Inevitavelmente, isto faz com que a narrativa, por vezes, se torne convuluta e um pouco difícil de seguir, quando elementos misteriosos sem resolução são introduzidos ao mesmo tempo que a conspiração complicada do Frank Castle se desenrola.
Tudo isto, as personagens fantásticas e as narrativas complexas, são brilhantemente coalescidas por uma realização impecável e um ritmo extremamente entusiasmante. A série avança muito muito depressa, com os eventos a sucederem-se de forma quase inevitável, com uma sensação de urgência face à necessidade de desvendar mistérios, que se revelam sempre mais profundos do que o que se pensava. Há uma abundância de cliffhangers desesperantes e surpresas chocantes.
O tom opressivo e a construção de tensão são perfeitamente transmitidos por uma realização muito dinâmica e criativa, que usa muito bem a composição das cenas, os reflexos, a luz e a sombra, e o espaço físico onde a acção se desenrola.
A coreografia das lutas é impressionante, e não se limita à simples troca de murros para a frente e para trás. Para além de serem visualmente impressionantee e muito, muito bad-ass, a progressão de cada luta segue as mesmas regras ritmo, com picos e vales de intensidade que as tornam muito entusiasmantes de ver.
Voltamos a ter, como não podia deixar de ser, uma cena equivalente à famosa luta do corredor da primeira temporada, onde o Demolidor dá um tareão a um número exagerado de bandidos, num plano de sequência espectacularmente bem filmado.
A fotografia da série é fantástica, contribuindo imenso para o peso e opressão de Hell’s kitchen. A série passa-se quase inteiramente de noite, onde a luz é invariavelmente fornecida por néons berrantes, luzes eléctricas de rua, faróis de carro, ou aquele brilho laranja do céu de qualquer grande cidade. O efeito da luz e das sombras sobre as personagens é excelente, e usado propositadamente para reflectir o tom emocional das cenas.
Finalmente, esta segunda temporada consegue inserir de forma muito natural elementos de Jessica Jones, construindo pontes entre as séries, e até muito subtilmente, piscares de olhos ao Universo Expandido Marvel.
Demolidor é uma das melhores coisas em televisão que eu tenho visto nos últimos anos. Arrisco-me a compará-la a Breaking Bad na sua execução narrativa e no desenvolvimento das suas personagens, o que lhe daria uma pontuação de 9/10. No entanto, a série não é perfeita, e o seu enredo convoluto e as várias pontas soltas que ficam inexplicadas tornam difícil de seguir a narrativa durante os últimos episódios. Se quiser ser rigorosamente objectivo, isso obriga-me a tirar-lhe mais um ponto e dar-lhe um 8/10, mas é muito discutível se esses erros sequer reduzem significativamente o prazer de ver a série.
Demolidor é a demonstração perfeita de como o formato episódico da série televisiva tem vantagens claras relativamente aos filmes na construção de mundos de super-heróis.