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Vou confessar-te uma coisa. Eu não sabia quem era o Notorious B.I.G. até ter visto Luke Cage. Se também não sabes quem foi não te sintas demasiado mal, ninguém sabe tudo e toda a gente tem direito a um bocadinho de ignorância. Deixa-me tentar explicar muito rapidamente quem era.

Christopher George Latore Wallace (21 de Maio, 1972 – 9 de Março, 1997), também conhecido por Notorious B.I.G., Biggie ou Biggie Smalls, foi um rapper americano que continua a ser sistematicamente nomeado como um dos melhores e mais influentes da história do rap. Morreu com 24 anos, e apesar de o total do seu conteúdo produzido a solo ser pouco menos que 3 horas, os seus dois únicos álbuns são dois dos álbuns de rap com mais sucesso comercial e apreciação crítica de sempre. Tão recentemente quanto 2012, a revista Rolling Stone nomeava Biggie como o “melhor rapper que já viveu” e em 2015 a Billboard dizia que era o melhor de todos os tempos. Desde a sua morte, as suas letras já foram citadas e sampled por uma enorme variedade de artistas de hip-hop, R&B e pop, incluindo Jay-Z, 50Cent, Alicia Keys, Fat Joe, Nelly, Ja Rule, Eminem, Lil Wayne, Game, Clinton Sparks, Michael Jackson e Usher. Sabes quem era o Tupac? Esse deves saber. O Biggie é pelo menos tão importante e influente como o Tupac.

Em Luke Cage a música permeia e enriquece a narrativa em quase todos os momentos.

O facto de eu não fazer ideia quem era o Biggie Smalls é uma medida do quão inadequado eu sou para fazer esta crítica. Luke Cage é um produto e um reflexo da consciência cultural colectiva afro-americana. Para compreender uma é preciso compreender a outra.

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Nos anos ’70 tornou-se popular um género de cinema chamado Blaxploitation. Inicialmente dirigido a um público de raça negra, acabou por transcender esse público e tornar-se transversalmente popular. O Blaxploitation centra-se frequentemente em personagens principais de raça negra, legalmente ambíguos, em bairros urbanos pobres, que lutam contra polícias corruptos e contra o crime organizado, tudo ao som de bandas sonoras riquíssimas de Soul Jazz e Funk. O mais notável destes filmes, e um dos que é habitualmente considerado criador do género, é Shaft, Mafia em Nova Iorque de 1971.

Ao mesmo tempo tornam-se extremamente populares (e criticamente conceituados, contrariamente ao filmes Blaxploitation) filmes sobre corrupção policial como Os Incorruptíveis contra a Droga (1971) e Serpico (1973). Não te esqueças também que tinha sido apenas em 1968 que o Movimento dos Direitos Civis tinha culminado com  o governo Americano a proibir legalmente a discriminação com base na raça, religião ou origem nacional, com a Lei dos Direitos Civis de 1968. É neste ambiente que nasce a personagem do Luke Cage, na banda-desenhada Luke Cage, Hero For Hire em 1972.

Agora, a Marvel reinventa Luke Cage para a Netflix.

Como já disse antes, as séries da Netflix focam-se nos problemas de rua em vez dos eventos apocalípticos que ameaçam o planeta. A escala das narrativas da Netflix é muito mais pequenina. A acção passa-se sempre nas mesmas ruas, dentro do mesmo bairro. Luke Cage passa-se inteiramente no bairro de Harlem.

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É-nos mostrada uma visão muito intimista de Harlem, cheio de cafézinhos locais, parques, campos de basquetebol, artistas de rua, barbearias clássicas, e como sendo uma comunidade vibrante e dinâmica apesar das limitações sociais, capaz de gerar artistas, desportistas e líderes. Há longas sequências, incrivelmente bem escritas, que nos mostram pessoas normais a terem as mesmas conversas de sempre acerca de basebol ou basquetebol, mostrando-nos a domesticidade e pacatez do lugar. Isto é importante porque Luke Cage não é um herói que por acaso está em Harlem, Luke Cage transforma-se num herói, e no herói específico que é, PORQUE cresceu em Harlem. A caracterização de Harlem está intrinsecamente ligada à caracterização de Luke Cage.

Luke Cage, interpretado de maneira que parece que é fácil pelo Mike Colter, é uma personagem perseguida pelo seu passado e pelo facto de ter super-poderes. Não há por aí além muitos momentos dele a ser super-herói (a dar porrada) mas os que há são muito bons. Em vez disso grande parte da narrativa está focada na ligação que Luke Cage tem com as pessoas à sua volta e com o seu mentor, Pop. Durante grande parte da sua história vemo-lo a lutar contra a obrigação de usar os seus poderes, à medida que o seu bairro vai sendo progressivamente destruído pela criminalidade aparentemente imparável à sua volta.

O que é interessante em Luke Cage é que aquilo que o move não é a vingança, não é o desespero, não é salvar uma pessoa em particular, ele nem sequer tem um plano particularmente definido do que é que quer fazer. Luke Cage é movido pelos seus valores e crenças, e nesse aspecto é talvez o herói mais honesto e sincero de todo o MCU. Matt Murdock, o Demolidor, é movido pela culpa, mas Luke Cage é movido pela sua crença em valores de comunidade e família. Uma e outra vez, para quase todas as personagens, é destes valores que surgem as suas motivações, e é a eles que as personagens se agarram para justificar as suas acções.

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Isso ajuda a centrar a acção na comunidade e no bairro, dando-lhe uma escala muito mais pequena. Mais uma vez não estamos a lutar contra alienígenas para salvar a Terra, estamos a lutar para preservar a nossa comunidade e protegê-la de criminosos e políticos que se quereriam aproveitar dela. A série mostra-nos que fazer isso não tem menos mérito do que usar uma capa e lutar contra robôs.

No entanto Luke Cage é talvez a série da Netflix que até agora tem mais referências ao MCU. Mais do que algumas referências soltas, como acontecia em Demolidor e Jessica Jones, aqui a degradação da comunidade de Harlem e um dos motivos pelos quais os chefes do crime se tornam tão poderosos é directamente atribuída ao Evento, quando alienígenas saíram do céu e destruíram metade da cidade. A recepção da comunidade ao Luke Cage está enviesada pela de outros super-heróis, que acaba por sua vez por ser uma ferramenta política dentro da narrativa.

O primeiro vilão importante de Luke Cage é Cottonmouth, fantasticamente interpretado por Mahershala Ali. Cottonmouth é um vilão fantástico. É violento, é agressivo, mas contrariamente ao Kingpin, não é o maior criminoso do seu bairro. É um vilão que ainda está a subir a escada da vilania. Mesmo na sua versão gangster, Cottonmouth é uma personagem com quem conseguimos empatizar porque é-nos mostrado com grande detalhe as pressões e problemas que o afectam, e isso permite-nos compreender o “porquê” das decisões que toma, mesmo que essas decisões sejam horríveis. É uma maneira extremamente inteligente de criar empatia por uma personagem, sobretudo por um vilão. Sobretudo porque Cottonmouth não é movido pela ganância ou desejo de poder. Tem crenças e valores de família e comunidade extremamente fortes, à semelhança do nosso herói.

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A série está populada por um conjunto de personagens igualmente fantásticas. Desde a maravilhosa Alfre Woodard, que interpreta a prima política e politicamente correcta de Cottonmouth, passando por Claire Temple, a Enfermeira da Noite, que já tinha estado presente tanto em Demolidor como em Jessica Jones, interpretada por Rosario Dawson, e acabando na fantástica Simone Missick, que interpreta Misty Knight, uma detective da polícia de Nova Iorque. Todas estas personagens desenvolvem-se de maneira extremamente interessante, com arcos narrativos complexos, e eu precisaria de mais três artigos para falar de cada uma delas.

Luke Cage é definitivamente a série mais leve de banda-desenhada da Netflix até agora. Com isto não quero dizer que Luke Cage não tenha momentos incrivelmente pesados e dramáticos (porque tem), mas que por comparação com Jessica Jones, por exemplo, Luke Cage tem relativamente mais auto-consciência de si mesmo e mais momentos abertamente “irrealistas” como esperaríamos encontrar numa banda-desenhada.

À semelhança de Demolidor e Jessica Jones, Luke Cage tem também uma realização fantástica. Os planos e composições são artisticamente pensados e contribuem sempre imenso para o tom e atmosfera a que a série aponta. A fotografia é excelente, e apesar de a série não se passar tanto à noite como em Demolidor, a maior parte da luz vem sempre de luzes fluorescentes, néons de bares e candeeiros de rua.

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Onde a série se destaca é na sua música. Em Luke Cage a música permeia e enriquece a narrativa em quase todos os momentos. Frequentemente a música vem da própria acção que está a decorrer (diegética); há longos planos e sequências só dos artistas (verdadeiros) a tocarem ou a cantarem essa música. Isto não só põe a música em primeiro plano como ajuda a construí-la como um elemento muito presente na vida e ambiente destas personagens.

O que é mais interessante é que narrativamente a série começa por ser extremamente clássica. Começa por introduzir-nos um conflito típico dos filmes de crime policial e Blaxsploitation de que eu tinha falado ao início. Luke Cage tem de proteger o seu bairro da influência criminal de Cottonmouth, numa narrativa muito virada para a acção gangster, a escalada da violência, e o impacto que isso tem na comunidade, ao mesmo tempo que a investigação policial liderada por Misty Knight vai decorrendo paralelamente. O que é fascinante é que a série consegue usar essa premissa muito clássica de banda-desenhada dos anos ’70 para estabelecer uma plano de fundo para depois explorar temas extremamente actuais.

Todas as semanas há notícias de afro-americanos mortos por polícias; estas seguem-se de manifestações da comunidade afro-americana contra a violência desproporcionalmente dirigida contra afro-americanos; estas são frequentemente seguidas de motins nas ruas em que a comunidade se vira contra si mesma e há saques a lojas da comunidade. A violência racialmente motivada é um tópico muito, muito, sensível na sociedade americana actualmente. Num ambiente destes, um super-herói de raça negra cujo super-poder é ser à prova de bala não podia senão ser politicamente relevante.

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Luke Cage aborda directamente esta problemática. Há menções directas ao movimento Black Lives Matter, a vídeos de dashcam de polícias em conflito com afro-americanos. Não tem medo de enfiar o dedo na ferida e explora o problema de variadíssimos ângulos. Se por um lado não se coíbe de mostrar a violência da polícia contra afro-americanos, também não foge de mostrar as origens dessa violência e agressividade tanto do lado da polícia como do lado dos afro-americanos. Mais do que isso, a série mostra-nos de uma forma extremamente inteligente como esses problemas têm origens económicas, sociais, motivadas tanto pelo crime organizado que beneficia da vulnerabilidade da comunidade, como por movimentos políticos que se aproveitam dessa vulnerabilidade para fazerem avançar as suas agendas.

Mais uma vez não estamos a lutar contra alienígenas para salvar a terra, estamos a lutar para preservar a nossa comunidade e protegê-la de criminosos e políticos que se querem aproveitar dela.

Eu tinha vontade de falar de todas as maneiras como a série mostra estas coisas, e os muitos paralelismos imagéticos que reforçam estas coisas, mas não te quero estragar o prazer de os descobrires e sentires por ti próprio (isto é uma crítica sem spoilers, não é uma análise, no fim de contas).

Sinto que esta série me mostrou vários aspectos da problemática racial/social americana em que eu nunca tinha pensado. Sinto que me foram mostrados mais lados de uma moeda que eu nem sabia que existiam. Que uma série de entretenimento televisivo tenha sido capaz de me explicar melhor a situação do que outras fontes fidedignas de informação é impressionante. Que essa série seja de super-heróis é surpreendente!

No entanto, apesar de todas estas coisas incrivelmente bem feitas que a série faz, a verdade é que não me senti tão entusiasmado ou engajado pela narrativa como me senti noutras séries da Marvel. Não sei explicar exactamente porquê. Talvez tenha a ver com o desenvolvimento lento da narrativa e com um ou outro problema no ritmo. Talvez tenha a ver com o foco narrativo que é dado a muitas personagens secundárias em detrimento da personagem principal.

LER
Finalmente chegou o trailer de Jessica Jones

Também pode ser porque eu não sabia quem era o Notorious B.I.G. até ver esta série. Percebe, eu estou tão deslocado de toda esta cultura musical afro-americana, sou tão ignorante de toda a história de luta dos negros na América, estou tão, mas tão longe de sequer começar a perceber a problemática racial na América, que não é surpreendente que a minha identificação e relação com esta narrativa e personagem principal esteja diminuída.

Identificamo-nos e importamo-nos com coisas que são parecidas a nós, com as quais nos relacionamos e simpatizamos. Tudo o resto sendo igual, eu vou sempre identificar-me mais com uma personagem masculina do que com uma personagem feminina. É inevitável, é mecânico, é mesmo assim que funciona. É exactamente por causa disso que é tão incrivelmente importante ter obras de arte/entretenimento que dêem personagens com as quais outras pessoas, que não eu (um homem caucasiano), se possam identificar.

Talvez seja por isso que eu não me consegui entusiasmar tanto com esta série? Não sei, honestamente. Mas se for por causa disso, é uma pena.

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