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Deixa-me contar-te uma anedota. Uma mulher começa a ter dores de barriga e enjoos, e vai ao médico. Depois de a examinar, o médico diz “Espero que goste de mudar fraldas!”, e ela responde “Porquê Dr., estou grávida?” ao que ele diz “Não, tem cancro do cólon”.

Se ainda aqui estás, o mais certo é gostares de Preacher.

Se bem que chamar a Preacher uma série de humor negro é demasiado redutor. Sim, é verdade que é uma série de comédia (às vezes) e o seu humor é (extremamente) negro, e é muito provável ofender muita gente (houve um grupo religioso americano chamado One Million Moms que fez uma petição para acabar com a série), mas Preacher consegue ser muito mais do que isso.

Baseado na banda-desenhada homónima de Garth Ennis e Steve Dillon, Preacher conta a história de Jesse Custer, um padre interpretado por Dominic Cooper, a sua namorada criminosa Tulip, interpretada por Ruth Negga, e o seu amigo vampiro toxicodependente, interpretado por Joseph Gilgun, na sua demanda por encontrar Deus nos cantos mais sujos da América. Enquanto que a primeira temporada se focava na exploração de como Jesse Custer tinha obtido o poder divino Génesis, que lhe permite com a sua voz comandar as pessoas a fazerem o que ele disser, e na descoberta de que Deus tinha desaparecido do Céu, esta segunda temporada mostra-nos o trio de protagonistas a dirigirem-se a Nova Orleães onde acreditam que Deus está escondido.

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Tal como na primeira temporada, o enredo da segunda temporada de Preacher é tudo menos directo e linear. A série toma o seu tempo a avançar a acção, desvia-se muito frequentemente do caminho mais rápido para lá chegar só para fazer uma piada ou para caracterizar um bocadinho mais uma personagem, ou para nos mostrar mais um pormenor do mundo estranho que nos constrói. Não se vê esta série pela conclusão, mas pela viagem. E a viagem é estranha. Muito estranha.

Há masmorras de sexo fetichista com homens vestidos de dálmata, porcos flutuantes, anjos imortais com espectáculos em Las Vegas, cripto-organizações religiosas com planos de dominação mundial, bares onde se levam tiros no peito por dinheiro, sexo anal surpresa, tráfico de almas em carrinhas japonesas, e toda uma outra sucessão de elementos bizarros e difíceis de descrever que geram todo um tom muito específico da série. E todos estes elementos, por estranhos ou desconfortáveis ou bizarros que sejam, são-nos apresentados com um humor desconcertante. A série obriga-nos a rirmo-nos de cenas escabrosas ou desconfortáveis.

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Esse desconforto é escalado com as ideias que nos são apresentadas. Sendo uma série que parte da premissa que Deus, o Céu, Anjos, Demónios e o Inferno são todos reais, é-nos apresentada um Deus irresponsável e pervertido; um Céu que é estruturado como uma repartição pública mal-organizada, onde as preces dos crentes são gravadas e arquivadas porque há demasiadas para ouvir em tempo útil; onde as almas são moeda de troca passível de ser inflacionada por pressões de um mercado que é dominado por grandes corporações japonesas; onde o Inferno é gerido como uma prisão sobre-populada onde há faltas de energia e é preciso fazer a manutenção das celas.

A maneira como estas ideias são subvertidas e apresentadas de uma forma mundana e corrupta, roubando-as da sua aura divina, funciona como uma sátira extremamente inteligente da religião, e uma desconstrução das ideias fundamentais do cristianismo. Não é acidental que durante a série toda nunca se percebe exactamente qual é a Igreja que o Jesse Custer representa. Também as personagens principais se tornam ainda mais interessantes nesta segunda temporada. Todas as personagens demonstram crescimento e evolução, mas nenhuma delas da maneira como esperaríamos ou sequer quereríamos, e a série faz de propósito para ser difícil gostarmos das personagens.

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Jesse Custer, que na primeira temporada era o padre desmotivado, a perder a sua fé, e cheio de questões, evolui para se tornar determinado e obstinado a um ponto em que esquece tudo e todos à sua volta, e a luta pela sua fé em vez de a confirmar ou destruir, corrompe-a. Jesse Custer é talvez a personagem mais interessante e profunda desta temporada, e Dominic Cooper interpreta-a de maneira brilhante, e temos oportunidade de ver alguns vislumbres da sua infância que nos mostram de maneira inteligente como ele se tornou a pessoa que é. Não que isso ajude a gostar mais dele, porque durante a maior parte da temporada ele é desagradável, rude, violento e sistematicamente desrespeita, ignora ou fere os seus melhores amigos. A própria série sai do seu caminho para nos fazer não gostar da personagem principal, e depois mostra-nos porque é que devemos empatizar com ela à mesma.

A Tulip, a personagem carismática, forte, badass, que improvisava bazucas com utensílios de cozinha, por quem eu me apaixonei na primeira temporada, sofre um trauma que a desestabiliza até ao seu fundo. Os aspectos mais óbvios da personagem que me apelaram nela na primeira temporada são removidos, e permitem-nos ver uma Tulip insegura, vulnerável, assustada com o seu próprio sofrimento e sem saber como lidar com ele. Grande parte da temporada é passada com a Tulip a procurar maneiras de crescer e de se reencontrar, e pelo caminho temos o privilégio de ver a Ruth Negga a mostrar-nos ainda mais facetas desta personagem que estavam escondidas por debaixo da fúria da Tulip.

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O arco narrativo de Cassidy é ainda mais subtil. A personagem de Cassidy serve na maior parte das vezes como escape cómico para a série (que funciona brilhantemente), e como terceira roda ao par que é Jesse e Tulip. No entanto, por debaixo das piadas e das peripécias que advêm de termos um vampiro drogado, há toda uma exploração da culpa e do egoísmo. O peso do segredo de que o Cassidy teve sexo com a Tulip na primeira temporada (e de que continua apaixonado por ela) contamina todas as suas interacções com a Tulip e com o Jesse de maneira subtil. Devido a um reencontro pessoal, Cassidy toma decisões que nunca temos a certeza quem é suposto beneficiarem. Sobretudo no fim da temporada, temos um vislumbre do verdadeiro monstro que pode estar por detrás da fachada que Cassidy pinta para si mesmo. Joseph Gilgun nasceu para este papel, e tem definitivalmente a interpretação mais subtil e com os momentos mais potentes de toda a temporada.

Há todo um conjunto enorme de personagens secundárias extremamente coloridas e carismáticas, como o Incrível Ganesh, o Herr Starr, a Lara Featherstone, o Santo dos Assassinos, o Denis, todas elas complexas e interessantes. É incrível como quase todas as personagens secundárias se tornam lentamente tridimensionais ao longo da série e têm algum tipo de evolução ou profundidade que nos faz questionar o que pensávamos delas ao início.

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Quero falar em particular do sub-enredo envolvendo o Eugene no Inferno que é pouco menos do que genial. Para além de percebermos muito mais da personagem, de nos ser mostrado como funciona o inferno, e de toda a viagem dele ser o seu crescimento enquanto pessoa, são as suas interacções com o Hitler que são brilhantes. Não deveria ser surpresa nenhuma que o Adolf Hitler (sim, o da Segunda Guerra Mundial) esteja no Inferno, mas o que é surpreendente é que desenvolve uma relação de amizade com Eugene. Hitler é uma personagem gentil, tímida, que demonstra compaixão para com Eugene. De uma forma genial, a personagem do Hitler é sistematicamente humanizada, mostrada como sendo vulnerável, de maneira a forçar-nos a empatizar com ele. As interpretações de Ian Colleti (Eugene) e Noah Taylor (Hitler) estão absolutamente no ponto, e funcionam perfeitamente para nos manipular até à posição desconfortável de nos fazer torcer pelo Hitler.

A realização é pelo menos tão boa como na primeira temporada, que é o mesmo que dizer que é excelente. As cenas têm sempre um ritmo excelente, as composições são óptimas, a luz é sempre fantástica e extremamente evocativa. Tal como na primeira temporada há momentos em que a narrativa se suspende e o ritmo desacelera para podermos usufruir de um plano particularmente artístico com luz maravilhosa. Todos os episódios têm sequências memoráveis, e esta série tem algumas das sequências de luta mais bem coreografadas e satisfatórias. Há uma ou duas em particular que misturam violência de criar bicho com uma música leve e etérea para mais uma vez nos criar contrastes estranhos que funcionam extremamente bem.

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E é precisamente neste aspecto que Preacher é brilhante. Seja no enredo e narrativa que brinca com as nossas expectativas e as subvertem de maneiras desconfortáveis, seja com as personagens de quem queremos gostar que são mostradas da pior maneira possível ou com personagens que sabemos que são horríveis mas que nos geram empatia, pela imagética e ideias extremas da série que por vezes são difíceis de ver, com o humor extremamente negro, todos os aspectos da série apontam para um tom muito específico.

Séries como Guerra dos Tronos criam drama e heroísmo épico, The Walking Dead cria terror e choque, Segurança Nacional mistério e desconfiança, mas a escrita de Sam Catlin, Evan Goldberg e Seth Rogen, tenta criar muito especificamente um tom de desconforto e bizarria. Todos os momentos e oportunidades são aproveitados da melhor maneira para criar este perfil emocional muito específico de ideias desagradáveis, de ambiguidade moral, humor desconfortável. O terrível é sobreposto ao cómico, o dramático é contraposto ao ligeiro, e mesmo as ideias mais profundas têm uma piada de peidos lá metida. Isto faz de Preacher uma das séries mais únicas, desafiantes e refrescantes da actualidade.

Como achas que Preacher se distingue de outras séries?