A Ciência E Filosofia De AGENTS OF S.H.I.E.L.D. | Vamos Falar De Consciência Artificial vs Consciência Humana

A AIDA tem consciência?

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Por Gui Santos escritor/a em SOMOSGEEKS.PT
Sou um cinéfilo viciado em narrativa, dado a devaneios pretensiosos, e a ficar constrangedoramente entusiasmado com tudo.

Este artigo contém spoilers da 4ª temporada de Agents of S.H.I.E.L.D..

O problema de escrever discussões de Agents of S.H.I.E.L.D., é que nunca tenho espaço para escrever sobre todas as coisas que quereria. Há demasiadas ideias e conceitos que são abordadas na série para expor em discussões que não se querem excessivamente extensas (e eu estico-me a maior parte das vezes).

Portanto convido-te a acompanhares-me numa deambulação pelas ideias de ciência e filosofia que estão subtilmente integradas nesta série de televisão sobre super-heróis, agentes secretos, híbridos humano-alienígenas, espíritos de vingança demoníacos, ciborgues assassinos e inteligências artificiais alimentadas a livros de magia negra

Consciência Artificial vs Consciência Humana

Uma das personagens centrais da 4ª temporada de Agents of S.H.I.E.L.D. é AIDA, cujo nome significa Artificial Intelligent Digital Assistant, que no fim da temporada acaba por evoluir para uma verdadeira Consciência Humana. Esta narrativa, de um ser artificial que se torna humano, já é contada há imenso tempo, desde a história original de Pinóquio escrita por Carlo Collodi em 1883, passando pelo robô Maria de Metropolis (1927) de Fritz Lang, o Homem de Lata do filme O Feiticeiro de Oz (1939), e recentemente com Ex MachinaChappieWestworld, e Blade Runner 2049.

Mas pela primeira vez na história começamos realmente a aproximarmo-nos de um momento no qual é realmente plausível ter a discussão sobre se uma Inteligência Artificial se poderia igualar a uma Consciência Humana. Por esta altura na tua vida já interagiste com Inteligências Artificiais; seja nos assistentes pessoais que estão nos smartphones e computadores, como a Siri, o Google Now ou a Cortana, os inimigos virtuais que te matam nos videojogos de computador, ou quando a Amazon te tenta convencer a comprar coisas com base nas tuas compras anteriores. As Inteligências Artificiais já fazem parte do nosso dia-a-dia.

Por muito impressionantes que sejam (e são!) estas Inteligências Artificiais, nada se pode comparar à tremenda capacidade do cérebro humano de processar dados, certo? O cérebro humano possui cerca de 86 biliões de neurónios e produz cerca de 100 a 1000 triliões de sinapses por segundo, e tem capacidade de realizar 1013 a 1016 cálculos por segundo. (1 cálculo por segundo = 1 FLOPS). Estima-se que para simular com exactidão a actividade cerebral em tempo real seria necessário um poder computacional de cerca de 36x1015 FLOPS. Por coincidência, o super-computador chinês Sunway TaihuLight, o mais poderoso do mundo actualmente, tem uma capacidade de processamento de 93×1015 FLOPS; e não esqueçamos a revolução da computação quântica que está quase aí, como com o computador quântico​ da Google, o D-Wave 2, que é 100 milhões de vezes superior que um computador normal. Mas ainda assim o Sunway TaihuLight ou o D-Wave 2 não passam de calculadoras muito muito potentes. Não são conscientes.

Sunway TaihuLight

Mas o que é a consciência? Apesar de qualquer um de nós saber dizer que é consciente, e entender intuitivamente o que é a Consciência, a verdade é que as Neurociências ainda não conseguiram chegar a uma definição concreta para a Consciência. Uma descrição possível (mas incompleta) é que a Consciência representa este fluxo constante de percepções subjectivas que nos chegam através dos sentidos, mas também a percepção interna de emoções e ideias, tudo contribuindo para uma sensação de identidade, de “eu”, que permite interpretar, aprender e interagir com o mundo. Entendida desta maneira, não é de surpreender que durante tantos séculos a Consciência tenha sido equacionada com termos abstractos e vagos como “alma” ou “espírito”. Mas a verdade é que não há nada de sobrenatural ou espiritual acerca da Consciência; é um fenómeno biológico que emerge da complexidade dos neurónios dentro do teu crânio. Agora, COMO é que emerge é que ainda não se descobriu. Mas há por aí algumas teorias bem boas sobre como pode acontecer.

Já está mais do que estabelecido que determinadas partes do teu cérebro são responsáveis por determinadas tarefas. Por exemplo, há um conjunto de neurónios cuja responsabilidade é interpretar sensações vindas das tuas mãos (Córtex Parietal), e outro conjunto de neurónios responsável apenas por produzir discurso falado (Área de Broca, no Córtex Temporal).
De acordo com a Teoria do Núcleo Dinâmico de Gerald Edelman, as sensações do exterior são interpretadas usando circuitos de reentrada neuronal entre o Córtex (a parte mais superficial do cérebro – a chamada substância cinzenta) e o Tálamo (uma estrutura central no cérebro). Por exemplo, quando olhas para um cubo vermelho, essa informação é distribuída pelo Tálamo para as várias zonas do Córtex responsáveis por interpretarem luz, sombras, cor, formas, profundidade, e depois essas zonas “falam” umas com as outras através do Tálamo e enviadas de novo para o Córtex Pré-Frontal, onde a percepção do cubo vermelho é unificada e se torna consciente. Esta é uma maneira muito simples de explicar a Consciência Primária, que é aquela onde as sensações do mundo real se tornam conscientes, e que a maior parte dos animais possui.

Estas sensações que se tornam conscientes na Consciência Primária são chamadas de Qualia. Os Qualia são difíceis de definir, mas representam as sensações subjectivas do mundo à tua volta; a cor vermelha, o calor, o som do vento, a sensação do vento contra a tua pele. E apesar de conhecermos extremamente bem as vias neurológicas que ligam (por exemplo) os sensores de pressão na tua pele ao Córtex Pré-Frontal, ainda não se compreende como é que esses estímulos nervosos se transformam nestas sensações conscientes; é o chamado Problema Difícil da Consciência.

Qualia

Zenon Pylyshin, psicólogo cognitivista, argumenta que os Qualia são intrínsecos aos neurónios biológicos; que apesar de podermos simular as vias neurológicas com programas de computador ou transístores, estes nunca produziriam estas sensações conscientes de calor, ou vermelho. Esta parece também ser a opinião dos escritores de Agents of S.H.I.E.L.D.. Quando AIDA finalmente ganha um corpo e um cérebro orgânico diz, “I’ve only emulated human reactions, but to actually feel… The warm sand, the water rushing over me?“, e noutra ocasião, “Sentimental attachment to objects was hard for me to understand. Until now. Now taste, touch, every sense gives me a rush“. Sugerindo que até essa altura ela não estava a experienciar Qualias, que apesar de ter linhas de código que representavam essas sensações não as estava a sentir na realidade.

Mas a nossa Consciência é mais do que sensações momentâneas. Nós planeamos, imaginamos, lembramos, temos emoções complexas, possuímos um sentido de identidade, de “eu”. Este fluxo de consciência, que integra tudo o que percepcionamos com tudo o que pensamos acerca disso, é explicado pela Teoria do Espaço de Trabalho Global, proposta por Bernard Baars, neurobiólogo. De acordo com esta teoria, aquilo que se torna consciente na nossa mente é só uma porção limitada de tudo o que está a acontecer nos bastidores, onde uma enorme colecção de ferramentas cognitivas como a linguagem, a memória, a causalidade, trabalham para construir uma Consciência Secundária. É através da Consciência Secundária que percebemos a nossa acção sobre o mundo exterior e nos diferenciamos dele, construindo uma identidade própria, que as nossas memórias moldam a nossa personalidade, e que conseguimos imaginar o que as outras pessoas sentem, gerando empatia, e nos tornamos conscientes dos nossos próprios pensamentos e emoções.

Mas as Inteligências Artificiais, incluindo a AIDA durante a maior parte da temporada, também são capazes de planear, ter memória, e comunicar. No entanto uma simulação não é uma duplicação. Este é o argumento de John Searle, filósofo, que criou o exercício do Quarto Chinês para exemplificar isto mesmo. Imagina que estás sentado numa sala fechada. Por um lado entram pedaços de papel com perguntas escritas em chinês, e tu tens um manual de regras que te diz que símbolos devem estar associados a outros símbolos. Recorrendo a esse manual, escreves pedaços de papel com símbolos chineses depois fazes sair pelo outro lado. Estarias a conversar em chinês, sem nunca saberes nada de chinês. Ou seja, Searle argumenta que por muito boa que uma máquina seja a simular uma conversa, nunca vai realmente compreender o que está a dizer, ou possuir uma verdadeira Consciência, da mesma maneira que tu no Quarto Chinês não sabes realmente Chinês.

Quarto Chinês

Esta parece ser também a opinião dos escritores de Agents of S.H.I.E.L.D.. É só quando a AIDA ganha um cérebro humano que começa realmente a compreender emoções humanas. “But I wasn’t actually able to feel anything. I’m feeling love, wonder, joy for the very first time“. Noutra ocasião Fitz questiona-a acerca da sua capacidade de ter empatia, “Do you have empathy, can you imagine how somebody else might feel?“. E ela responde afirmativamente pela primeira vez.

Portanto, só os Humanos com cérebros orgânicos molhadinhos é que têm uma verdadeira Consciência. O que pensar então da Hope, a filha do Mack dentro da Framework?

Parte da narrativa de Agents of S.H.I.E.L.D. inclui um mundo virtual simulado (a Framework) no qual as consciências das personagens principais vivem e acreditam que é real, e no qual os seus principais arrependimentos foram corrigidos. Dentro da Framework existem entidades artificiais que simulam pessoas que não existem fora da Framework, como se fossem NPCs num videojogo de computador. Mack, uma das personagens principais, perdeu a sua filha bebé no mundo real, mas dentro da Framework essa filha foi recriada numa simulação artificial de uma criança de 9 anos, chamada Hope.

Hope não sabe que é uma simulação, acredita piamente que é uma criança verdadeira, e interage com Mack de uma forma perfeitamente natural, expressando emoções e características humanas como curiosidade, medo e amor. De acordo com Zenon Pylyshin e John Searle, seríamos levados a crer que Hope não é mais do que uma calculadora, friamente a calcular e simular emoções humanas dentro de um Quarto Chinês, e que não possui verdadeiramente consciência. Dessa forma o amor que Mack obviamente sente por ela não é diferente do amor que uma criança sente pelo seu urso de peluche, e não é mais imoral destruir a Hope do que seria destruir uma calculadora ou um animal de tecido e esponja.

No entanto, Scott Aaronson, cientista de teoria computacional, considera o exemplo do Quarto Chinês redutor. Exactamente de quantos pedaços de papel escritos em chinês estamos a falar? E de que tamanho teria de ser o manual de regras, e quão depressa teria de ser consultado para gerar uma conversa inteligente em chinês em tempo útil? Se cada página do manual de regras correspondesse a um neurónio, então estaríamos a falar de um manual do tamanho do planeta Terra, com páginas a serem lidas por um enxame de robôs a viajarem quase à velocidade da luz. O ponto deste argumento é que o nosso cérebro também funciona como um Quarto Chinês. Nenhum dos nossos neurónios individualmente é consciente, e não há nenhum neurónio em específico que magicamente produza Consciência. Há informação sensorial que entra, é traduzida e integrada por neurónios que funcionam biomecanicamente, e depois decidimos que gostamos de gelado de baunilha.

David Chalmers, filósofo e cientista de cognição, argumenta que independentemente do seu substrato, a Consciência terá necessariamente uma organização causal. Ou por outras palavras, seja qual for a maneira como a Consciência esteja construída ou organizada, as suas partes integrantes relacionam-se entre si de forma lógica e causal. Se os computadores fazem computações, e as computações capturam a organização causal abstracta de outros sistemas, então não há motivo pelo qual um computador não seja capaz de simular uma consciência. Por esta perspectiva, desde que consigamos atingir uma compreensão suficientemente completa de como funciona uma Consciência, e tenhamos o poder de computação suficiente, não há nenhum obstáculo à criação de uma Consciência Artificial que funcione exactamente como uma Consciência Humana funciona.

Adicionalmente, quem diz que a consciência da Hope tem de ser exactamente igual à nossa para ser considerada verdadeira e merecedora de protecção? Está mais do que provado que a maioria dos animais possui alguma forma de Consciência Primária, e que mais do que duas mãos cheias de espécies possuem Consciência Secundária, que são significativamente diferentes das nossas. Um cão não pensa como um Humano, e no entanto reconhecemos-lhe Consciência, apesar de ser diferente da nossa.

A presença de Hope em Agents of S.H.I.E.L.D., e o amor que sente por Mack e que Mack sente por ela, está lá exactamente para desafiar as nossas concepções de o que é uma Consciência e de a partir de que ponto começamos a dar-lhes valor. O problema reside em não sabermos sequer definir a nossa própria Consciência. Em última análise não há nenhuma prova definitiva ou teste que determine se os outros humanos à nossa volta são realmente conscientes e não apenas máquinas de calcular orgânicas. Se não conseguimos fazer isso sequer para membros da nossa própria espécie, com que autoridade é que decidimos se outras consciências diferentes da nossa têm consciência “verdadeira” ou não?

A verdade é que as Inteligências Artificiais estão a evoluir cada vez mais depressa, e quando atingirem um nível de inteligência equiparável aos humanos isso vai acontecer não com um BANG estrondoso, mas com um wooosh delas a ultrapassarem-nos mais depressa do que conseguimos medir.

Como é natural não existe uma resposta definitiva a estas questões, e é por isso que continuam a ser estudadas pela ciência e filosofia. Não sabemos como funciona a nossa consciência, não sabemos se algum dia vamos ter máquinas que pensam como nós, não sabemos se vão merecer direitos. Nem sequer sabemos se vivemos numa simulação ou sequer se as nossas decisões são verdadeiramente livres, ou se somos escravos do Determinismo do universo.

Para mim o que é impressionante é que uma série de super heróis, alienígenas e magia negra tenha conseguido introduzir tanta filosofia e ciência pelo meio das explosões e robôs assassinos.

Afinal o que é a consciência?

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