Em Dezembro de 1999 saiu para a Dreamcast Shenmue, considerado a obra-prima da Sega, e aclamado por alguns como o melhor e mais revolucionário jogo de todos os tempos. No entanto, as suas vendas não corresponderam ao esperado, e algumas teorias apontam-no como um dos principais responsáveis pela saída da Sega do mercado de consolas.
Vamos falar apenas do primeiro Shenmue porquee não dá para economizar palavras quando falamos de um clássico deste calibre.
A personagem principal de Shenmue é Ryo Hazuki, um rapaz de 17 que vive num dojo (espaço físico onde se desenvolve o treino) de artes marciais, em pleno bairro japonês, este aprendeu a lutar com seu pai, Iwao Hazuki, desde pequeno, depois da sua mãe ter morrido de uma doença desconhecida.
Quem cresceu com o Ryo foram Ine Hayta (Ine-san), uma senhora que cuida da sua casa, e Masayuki Fukuhara, um estudante de artes marciais que viveu com a família de Ryo por quase uma década.
Começamos o jogo quando Ryo chega a casa e vê carros estranhos lá estacionados à frente, e o seu pai a ser atacado por um homem que queria um espelho, do qual Ryo nunca tinha ouvido falar.
Para forçar Iwao a dizer onde o espelho estava, este homem luta contra Ryo e vence-o em segundos, ameaçando matá-lo. Iwao conta onde o objeto está, e após apoderar-se dele, luta novamente com Iwao, pondo fim à sua vida. Apesar do apoio dos seus amigos, e de ter sido derrotado tão facilmente, Ryo decide descobrir quem é aquele indivíduo, e persegui-lo para conseguir a sua vingança.
Começamos esta investigação na sua própria casa, usando o modo de visão, e assumimos o papel de Ryo. Podemos interagir com inúmeros objetos do cenário e abrir as portas dos armários para procurar itens e objetos, que de certa forma contam um pouco como é a vida da família Hazuki. Também podemos usar o telefone para ligar para alguém, telefone este ainda de disco, ao invés de teclas, uma das primeiras coisas que denunciam que o jogo não se passa na época do seu lançamento, mas sim uma década antes, mais propriamente em 1986.
Relembro que quando Shenmue saiu, os videojogos mais avançados que tínhamos nessa altura eram Metal Gear Solid, Final Fantasy VIII, The Legend of Zelda: the Ocarina of Time, e GTA que ainda era só um esboço do que se tornaria depois de alguns anos.
Esta função de visão de primeira pessoa, pode parecer hoje muito simples e corrente, mas na altura foi uma novidade gigantesca, sem falar de todo o grafismo do jogo, um dos primeiros a mostrar-nos o poder da sexta geração de consolas.
Quando saímos de casa, conhecemos Yamanose, um dos bairros da cidade de Yokosuka, onde se desenrola a ação de Shenmue. O realismo impressiona até nos dias de hoje, parecendo bastante um típico bairro residencial japonês, tanto na arquitetura das casas, como no modo das pessoas que lá habitam.
Megumi, uma das crianças do bairro, encontra com um gatinho na rua, que depois um carro preto em alta velocidade atropela. Ryo apercebe-se imediatamente que este carro poderia ser do assassino de seu pai, e antes de partir em busca de mais informações, temos a opção de seguir com uma das várias missões secundários do jogo, que é cuidar deste gatinho, já que a mãe de Megumi não a deixa levá-lo para casa, e Ryo de certa forma sente que é responsável pela situação.
Seguidamente chegamos a Sakuragaoka, outro bairro de Yokosuka, e lá encontramos a primeira loja. Esta tem vários tipos de produtos à venda, rifas para comprar e concorrer a prémios, e itens raros para coleção. Do lado de fora temos um dos maiores vícios dentro do mundo de Shenmue e onde gastaremos o precioso dinheiro que a pobre Ine-san nos entrega diariamente: as máquinas de Gashapon. Por 100 ienes, recebemos uma cápsula contendo um brinquedo, na maior parte das vezes figuras conhecidas de outros jogos da Sega, desde o conhecido Sonic até ao não tão notório Ristar. O que recebemos é completamente aleatório, mas mesmo assim acreditem que dá muita vontade de completar a coleção de brinquedos.
Esta loja é mantida por Setsu Abe, uma senhora de 75 anos que trata Ryo como se ainda fosse uma criancinha. Vive sozinha há cerca de quarenta anos, pois foi separada do seu marido na segunda guerra mundial. Abe acabou por ficar senil com a idade, mas nunca se esqueceu do marido, tanto que todas as noites prepara dois pratos nas refeições, esperando que um dia ele volte.
Mas qual o fundamento de contar sua a história no meio desta crítica? É assim tão importante para o desenrolar dos acontecimentos em Shenmue?
Na verdade não, nem um pouco, mas esta é apenas uma das muitas histórias que temos por trás dos NPCs do jogo. Diferentes de quase todos os jogos que existem, estes NPCs não são só figuras que andam aleatoriamente pelo cenário: cada um tem um nome, uma casa, uma história e uma rotina. Se pararmos para acompanhar alguns deles, vamos vê-los a sair das suas casas, a ir para o emprego, a sair para almoçar, a fazer exercício no parque, e mais tarde a voltar para casa ao final do dia. A impressão que temos quando reparamos nisto é que o jogo está vivo, e este ambiente proporciona uma imersão sem igual em Shenmue.
As pistas que conseguimos em Sakuragaoka levam-nos a Dobuita, o maior bairro da cidade nesta primeira parte do jogo. Encontramos mais lojas, novas personagens e também uma vida nocturna mais acentuada, cheia de bares, clubes nocturnos e pessoas do mais excêntrico que possam imaginar. As personagens que mais se destacam aqui são Nozomi e Tom.
Tom Johnson é um norte-americano que viajou por vários lugares do mundo, mas quando chegou ao Japão decidiu ficar a morar lá. O seu carro tem a forma de cachorro quente, e é onde vive com sua namorada. Tem o hábito de chamar os clientes com danças, rimas e o seu japonês horrível. Tom é praticamente uma caricatura do Gaijin (palavra japonesa que significa “estrangeiro”) visto pelos japoneses. Talvez possa parecer estranho, mas Tom é dos amigos mais próximos de Ryo. Dá-nos sempre boas dicas, ou aconselha-nos quando perdemos o rumo do jogo.
Nozomi Harasaki (namorada de Tom) é amiga de infância de Ryo, e ajuda a sua avó a cuidar de uma loja de flores. Logo nas primeiras conversas percebemos que tem uma paixoneta por Ryo, que não é retribuída – ele apenas nutre uma grande amizade por ela. Ryo chama-a de Harasaki-san, o seu apelido, uma forma dos japoneses demonstrarem que não são tão íntimos assim com as pessoas.
Cada NPC trata Ryo de maneiras diferentes. Alguns vêem-no como amigo, outros apenas como um conhecido, e alguns que não o conhecem evitam-no. O mais engraçado é com algumas raparigas, que quando são abordadas por ele fogem imediatamente, como se fosse algum tarado que as queria agarrar.
O jogo ocupa 3 GD-Roms, os CDs de Dreamcast, e uma parte considerável deste espaço foi ocupado com vozes, já que os diversos NPCs falam de coisas diferentes caso percamos tempo a conversar com eles. Este também foi o primeiro jogo deste tipo onde todos os diálogos receberam vozes e os textos são ficaram só em legendas.
Com as informações que conseguimos em Dobuita, descobrimos o nome do assassino de Iwao Hazuki: Lan Di, um dos líderes da Chi You Men, uma máfia chinesa que trabalha com comércio ilegal no Japão.
Com isto também temos de conversar com os vários imigrantes chineses da região para conseguirmos mais informações, e aqui também conhecemos os célebres marinheiros, na sua maior parte norte-americanos, que parecem ter ligações com Lan Di, e são estas as personagens que provocam as primeiras lutas no jogo.
A ação do jogo acontece de duas formas: a primeira é o Quick Time Event – numa cena temos de carregar no botão certo assim que ele aparece no ecrã, e depois de uma ou mais tentativas falhadas temos que repetir novamente essa cena, até acertarmos para prosseguir. Muita gente hoje considera os Quick Time Events um termo gasto, mas a novidade agradou muito quando Shenmue foi lançado, já que esta é uma evolução para um videojogo se aproximar mais de um filme. A sua maior vantagem é poder ver cenas mais elaboradas e dinâmicas do que o sistema de jogo permite.
O outro é o modo de Free Fight, onde temos total controlo de Ryo to lay the smackdown! Nos adversários, este sistema de combate tem como base a série Virtua Fighter, que também é fruto da mesma empresa (AM2): temos um botão correspondente para soco, pontapé, defesa e esquivar-nos dos ataques, podemos combiná-los com toques no nosso D-pad para executar movimentos especiais, e até combos! Aprendemos movimentos novos conseguindo pergaminhos de instrução que estão escondidos pelo jogo, ou então podemos comprá-los numa loja. Alguns NPCs também podem ensinar-nos movimentos novos, podemos treiná-los no dojo dos Hazuki, ou em parques de estacionamento, e é bom que os pratiquemos mesmo, embora sejam poucos os momentos no jogo em que entramos em combate, algumas dessas lutas podem ser difíceis se não conhecermos bem os movimentos.
Depois de espancarmos muitos marinheiros e descobrirmos um pouco mais sobre a máfia chinesa, Ine-san entrega a Ryo uma carta toda escrita em chinês, que chegou a casa um dia após a morte do seu pai. Após conseguirmos alguém para traduzi-la, Ryo entra em contacto com a pessoa que a enviou: Yaowen Chen. Este homem cuida de negócios internacionais no porto de Yokosuka, juntamente com o filho, Guizhang, e este conta a Ryo que o ataque de Lan Di não foi um simples assalto, e que existe muito mais sobre a vida de Iwao Hazuki que Ryo nem sequer imaginava. O Mestre Chen conta também que não existe apenas um espelho, mas sim dois, o que Lan Di tinha levado era o do Dragão, e o Espelho da Fénix ainda devia estar escondido na casa dos Hazukis.
Segundo a lenda, se os dois espelhos se encontrarem, uma criatura chamada Chiyou irá ressuscitar e devorar toda a Terra. Ryo tem que encontrar o espelho da Fénix e mantê-lo longe de Lan Di a todo custo. Porém, o Mestre Chen desencorajou Ryo a perseguir Lan Di, pois esta vingança iria apenas resultar na sua morte. Ryo ignora este aviso, e está por conta própria para conseguir uma viagem para Hong Kong e confrontar Lan Di, descobrir mais sobre o passado do seu pai, e provar a todos, inclusive a si mesmo, que esta não é apenas uma vingança pessoal estúpida, mas é o nome e a honra da sua família que estão em jogo.
Como deu para ver até aqui, Shenmue segue uma linha bastante realista para um videojogo. No entanto, este realismo por vezes chega a atrapalhar a experiência. O jogo começa em Novembro de 1986, e os dias são contados no calendário, tendo transições de dia para noite, e ainda mudanças climatéricas, como chuva e neve, com diferenças visuais no cenário.
Como ainda é menor, Ryo não pode ficar fora de casa até muito tarde. Se chega depois das 11 da noite, no dia seguinte Ine-san aparece e ralha connosco. De qualquer forma, se ficarmos fora até um pouco depois dessa hora, Ryo é automaticamente tele-transportado para o seu quarto, e tem que dormir. Não podemos é avançar no tempo, e se, por exemplo, terminamos uma missão e a missão seguinte só vai acontecer no próximo dia, temos que arranjar maneira de queimar tempo até chegar a hora de dormir.
Felizmente temos muito com que nos distrair. Em Dobuita temos um salão arcade, com algumas máquinas para jogarmos mini-jogos baseados em Quick Time Events, como dardos e até dois jogos de arcade da Sega completos: Hang-On e Space Harrier.
O maior problema do jogo, principalmente para quem quer colecionar os todos os itens, é que é muito difícil ganharmos dinheiro. Começamos com um pouco menos de 10.000yen, e a cada dia Ine-san entrega-nos um envelope com mais 500yen. Para conseguirmos mais, temos que esperar até uma missão onde trabalhamos como operador de empilhadores no porto.
Pois é, Ryo tem 17 anos, não pode ficar fora de casa depois das 11 da noite, mas pode conduzir empilhadores e até participa em corridas destes com os seus colegas de trabalho antes do início de um dia de expediente. Vai um telefonema para a direcção de segurança no trabalho? Nesta parte ganhamos dinheiro pelo número de caixas que levamos, e sim, esta parte está relacionada com a história do jogo. O engraçado é que, enquanto os operadores de empilhadores conduzem na pista certa, o pessoal que está à pé não tem muito cuidado. Perdi a conta às vezes que dei caixadas na cabeça deles, ou que fui parado por uma personagem invisível, que só apareceria alguns segundos depois, devido ao horrível problema de pop-up que este jogo tem.
Outra maneira mais arriscada de ganhar dinheiro é tentar a nossa sorte nas slot machines, mas é mais fácil sairmos destes locais sem sequer termos dinheiro para apanhar um autocarro. Podemos tentar aumentar a nossa sorte se falarmos com a vidente antes de ir jogar, de qualquer forma não aconselho este modo para obter dinheiro.
Durante a leitura desta crítica já devem ter-se apercebido que Shenmue é um jogo com vários tipos de jogabilidade, que se adapta ao que a história necessita em cada momento: investigação, lutas, stealth, corridas… fazemos muitas e diversas coisas, por isso é que não caracterizaram o jogo como um RPG, de aventura ou de acção, inventaram um novo género para descrevê-lo: Full Reactive Eyes Entertainment (FREE), com a premissa que tudo o que podemos ver, também podemos interagir. Não é exactamente verdade neste caso, pois apenas algumas das coisas que vemos podemos realmente interagir, mas essas algumas coisas também são muito mais do que teríamos por anos. Hoje em dia Shenmue pode ser descrito como um jogo Open World – embora limitado comparado aos padrões correntes, foi e é considerado o pioneiro deste género.
Este jogo é apenas o primeiro capítulo de Shenmue, de uma série planeada para ter 16 capítulos. Por esta razão, Shenmue não acaba como esperaríamos, ficando inúmeros mistérios e dúvidas no ar, como por exemplo, quem é a rapariga com quem Ryo sonha várias vezes durante o jogo, quem é o tipo com quem Iwao está na foto, enunciando apenas alguns.
Recentemente, com a campanha Kickstater de Shenmue III, quis saber por mim se este jogo ainda merece o lugar de destaque que tem, e por isso revisitei a história de Ryo uma vez mais. Posso dizer-vos que hoje, 15 anos após o seu lançamento, este foi um dos jogos mais imersivos que já joguei na minha vida. O seu realismo e nível de detalhe ainda impressionam, mesmo passado tanto tempo, e de já ter vivido experiências mais modernas.
No entanto, Shenmue definitivamente não é do tipo de jogo que vai agradar a toda a gente: temos demasiada conversa e pouca ação, e por mais que a sua história seja interessante, sozinha não é suficiente para segurar uma pessoa. O jogo só tem significado quando entramos na pele de Ryo, olhamos com os seus olhos, tocamos com as suas mãos, falamos com os seus amigos e enfrentamos as suas ameaças.
Quando adquiria uma pista nova, antes de ir para o próxima missão, tinha interesse em conversar com os amigos de Ryo para saber o que tinham a dizer sobre ela. Quando estava a ficar tarde, eu corria para casa para não deixar a Ine-san preocupada, mas antes passava pela mercearia para comprar algo para o gatinho comer. Fiquei comovido quando Fukuhara ofereceu dinheiro para ajudar Ryo a pagar a viagem para Hong Kong, e irritou-me bastante ver as tampas que Ryo dava a Nozomi.
Enfim, este é um jogo intimista, para ser apreciado sem pressas, com a intenção de realmente envolvermo-nos com ele. Aposto que ao lerem esta crítica ficaram cheios de vontade de conhecer, ou re-explorar o mundo de Shenmue, que é um jogo que considero mais do que um jogo, é uma experiência que merece toda a vossa atenção e deve ser desfrutada quanto antes sem hesitações.