A palavra que melhor descreve o filme Cegonhas é “fofura”. Desde os olhos gigantescamente carinhosos à personalidade traquina. Desde os cabelos coloridos ao corpo pequeno e anafado. Desde o rosto aveludado ao riso extraordinariamente amoroso. Quem gosta de bebés, de certo ficará maravilhado.
O conceito do filme é delicioso. Desabrocha a memória do começo de Dumbo, de 1941, a quarta longa-metragem de animação dos estúdios Disney. A premissa rejuvenesce o mito segundo o qual os bebés são entregues pelas cegonhas. Esta crença é originária da Europa e popularizou-se no século XIX devido ao conto As Cegonhas de Hans Christian Andersen. Segundo o folclore alemão, as cegonhas iam buscar os bebés a caves ou pântanos, levando-os pendurados pelo bico até às famílias que colocassem guloseimas no parapeito da janela. O facto da cegonha ser um animal de grande porte, capaz de percorrer longas distâncias e, eventualmente, de transportar um bebé, contribuiu para a persistência do mito. A cor branca, símbolo de pureza, e os cuidados parentais prestados pelas cegonhas às suas crias ajudou ainda à criação de um simbolismo em torno destes animais: a maternidade.
No filme de Nicholas Stoller e Doug Sweetland, a entrega de bebés é feita a partir de uma fábrica gerida por cegonhas. As famílias enviam o seu pedido em carta e os bebés, depois de gerados, são entregues aos respetivos lares. Ou pelo menos era assim que acontecia. Quando o trabalho começa a revelar sérios problemas, as cegonhas decidem passar a entregar encomendas de uma empresa de vendas da Internet. Este novo conceito é interessante, seguindo as necessidades verificadas com o fortalecimento da sociedade de consumo e a possível mudança de valores que daí advém.
O espectador é imediatamente informado do objetivo da história. Não há pretensão de embelezar o mito através do recurso a uma cinematografia dramática, alicerçada em arquétipos narrativos como os observados nas primeiras produções da Walt Disney. Não existe uma linearidade tradicional, nem mesmo complexidade emocional. Existe sim a reconstrução de um mito segundo os requisitos de uma sociedade contemporânea. A ambição de progredir na carreira, as preocupações financeiras e o pensamento “dentro da caixa” são alguns dos temas retratados ironicamente e salpicados com humor para representar as idiossincrasias da sociedade de consumo.
CEGONHAS É UMA TENTATIVA DE OFERECER AO ESPECTADOR UMA REFLEXÃO SOBRE A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA.
Analisando trabalhos passados de Nicholas Stoller e Doug Sweetland, sendo o primeiro realizador de Vizinhos e o segundo animador de filmes como Toy Story, Monstros e Companhia, À Procura de Nemo e Incredibles – Os Super Heróis, fervilhava certa curiosidade sobre Cegonhas. O resultado foi uma longa-metragem animada, nas múltiplas acepções da palavra, mas carente em harmonia narrativa.
O enredo envolve duas personagens de naturezas significativamente distintas, quer seja em espécie, quer em motivações. Junior (com voz de Andy Samberg) é uma cegonha sôfrega pela sua promoção a chefe na empresa de entregas, e Tulip (Katie Crown) é uma humana órfã, trabalhadora na mesma companhia, desejosa por encontrar um lugar onde pertença. A missão de ambos iniciar-se-á quando a jovem activa a Máquina de Fazer Bebés acidentalmente e produz uma menina totalmente desautorizada. Junior e Tulip terão de unir forças e entregar-se a uma aventura determinante para o futuro da lendária missão das cegonhas no mundo.
Como história complementar é-nos apresentado um casal, imerso no trabalho, e o seu único filho, Nate (Anton Starkman). O distanciamento dos pais fomenta-lhe o desejo de ter um irmão mais novo, com quem partilhar as suas brincadeiras. É uma comédia em tom de crítica ao ritmo acelerado em que vivem muitas famílias contemporâneas, absortos nas suas preocupações financeiras e profissionais. É um convite ao borbulhar de um sentimento parental. Uma tentativa de oferecer ao espectador uma reflexão sobre a importância da família. Uma tentativa, porém, de transmitir um sentimento do qual o próprio filme carece.
Os realizadores esforçaram-se por criar uma mensagem que se perde na própria estrutura acelerada e emaranhada de piadas da história. É preciso entender que o espectador não é ignorante. Mesmo uma criança é capaz de compreender determinados valores e deixar-se comover por eles. É preciso confiar na capacidade do espectador para ver o que se estende para além da vista. O filme nem em si mesmo confia.
A história parece nunca encontrar o seu ritmo. Se o tom descontraído e cómico poderia ter-lhe sustentado as falhas, a constante estampagem de piadas tornou-as ainda mais evidentes. O filme é precipitado. Em momento algum se compreende qual o real objetivo de Cegonhas. Falhou na emoção, acertou na diversão… até esta se perder pelo caminho. No filme vemos as coisas acontecer, não as sentimos acontecer.
A modernização de um mito antigo foi uma ideia original. Digamos, a originalidade não está na história mas na ideia que serviu de base para a sua concretização. Porém, a constante impregnação de piadas, acontecimentos apressados e diálogos vazios, deixou para trás a esperança de um filme criativamente divertido. Felizmente, a perseguição dos lobos a Junior e Tulip e a luta dos protagonistas com os pinguins foram momentos de genuíno entretenimento. De forma alguma têm consistência para elevar o filme, mas enriqueceram-no.
Cegonhas não prometia ser ternurento, nostálgico ou emocionante. De facto, a mudança de paradigma verificada nos filmes de animação atuais, galgando de histórias belas e dramáticas para enredos alegres e divertidos, é refrescante mas a certo ponto entediante. Procuramos mais, sempre mais. Seja pelas referências passadas, seja pela exigência pessoal, seja pela migração de um olhar inocente para uma visão insatisfeita. Este filme serve o seu propósito, e fá-lo habilmente. Alguns momentos são realmente adoráveis. Outros bastante divertidos. Mas numa análise global, nenhum deles é suficiente para disfarçar a falta de harmonia e coesão. Oferecia tanto e, no entanto, deu-nos tão pouco…