Esta maravilhosa e extensa série de livros segue a vida de Gordiano, um cidadão romano cujas aventuras começam no ano 80 A.C. Gordiano é em muitos aspectos um cidadão comum – sem antepassados importantes, pertence à classe dos plebeus, e todas as suas posses reduzem-se a uma decrépita casa que herdou do seu pai, situada num dos piores bairros de Roma, e uma escrava chamada Betesda, uma egípcia desobediente com a qual tem uma relação muito pouco profissional.
Apenas uma coisa o distingue de tantos outros cidadãos de baixo nível: Gordiano tem um talento inigualável para descobrir a verdade, para desvendar mistérios e para suscitar confidências dos outros homens. Este talento que, tal como a velha casa do Monte Esquilino, herdou do seu pai, valeu-lhe o título pelo qual é conhecido: O Descobridor. Gordiano faz deste talento uma carreira, e dedica-se a revelar as respostas a enigmas e a pôr a descoberto intrigas, que vão desde a querela mais básica (apanhar um cônjuge infiel, descobrir uma jóia roubada) às mais complexas catástrofes (participar na perseguição de conspiradores que pretendem derrubar o Império, investigar assassínios ao pedido de cônsules e magistrados).
Vale a pena falar sobre o génio criativo do qual surgiram os (até agora) quinze volumes desta série. Steven Saylor nasceu no Texas em 1956, tendo completado recentemente os 60 anos. Licenciado em História Clássica pela Universidade do Texas, tem aparecido como especialista na história e na vida quotidiana dos romanos em documentários do Canal História. Apesar de ser mais conhecido pela ficção histórica, é também autor de contos sobre os mais variados temas (incluindo um conjunto de relatos eróticos sob o pseudónimo Aaron Travis), dois thrillers passados na sua Texas natal (A Twist at the End, 2000, e Have You Seen Dawn?, 2003), e a obra autobiográfica My Mother’s Ghost (2013), na qual fala sobre o trauma da morte da mãe na sua infância e sobre a sua feliz relação com o marido, Richard. Porém, o seu maior sucesso continua a ser a aclamada série Roma Sub-Rosa, “debaixo da rosa”, expressão que significa “em segredo”, “nas sombras”.
O sucesso desta série e o imenso interesse que tem suscitado devem-se, em grande parte, aos pormenores históricos realistas com que Saylor preenche as suas histórias. Ele consegue evocar imagens de fins de tarde típicos de uma família romana, reclinados nos seus canapés a discutir os últimos boatos políticos saídos do Senado ou as novas conquistas de Pompeu no Oriente, enquanto são servidos pelos seus escravos. Consegue, de igual modo, comunicar o terror e a desesperança da vida de escravos maltratados pertencentes a senhores cruéis, e emprestar um ar de dignidade à subserviência, e de coragem à sobrevivência obstinada de remadores de galés ou escravos das minas. Tudo isto é feito com a maior honestidade, sem atribuir culpa a ninguém pelos desígnios das Parcas (isto é, o Destino), e sem privar nenhuma personagem dos seus atributos negativos ou positivos, independentemente da posição social – há senhores clementes e escravos gananciosos ou cruéis, há escravos inteligentes e senhores ignorantes.
Todas as personagens parecem reais, saltam da página e torna-se igualmente fácil sentir-se emocionalmente ligado a todas elas. Os seus relatos de discursos no Fórum, eleições atribuladas e debates no Senado são transcritos de obras de contemporâneos verdadeiros do ficcional Gordiano, como Cícero ou Salústio. Ao mesmo tempo, é tecida à volta destes momentos reais da história romana (como, por exemplo, a revolta de escravos de Espártaco, largamente falada no livro O Abraço de Némesis) uma teia de intrigas e mistérios de resolução absolutamente imprevisível.
Enquanto outros livros de detectives permitem entrever o final da trama desde o seu início, os de Saylor são capazes de surpreender até o mais atento dos leitores.
O livro com o qual isto tudo começou foi Sangue Romano, publicado em 1991. Neste intrigante volume, um jovem Gordiano é contratado por Cícero, que viria a tornar-se um dos mais recordados advogados e políticos do seu tempo. Cícero foi, a sua vez, contratado para defender o seu relutante cliente, Sexto Róscio, contra a mais grave acusação existente na sociedade romana: parricídio.
O castigo para este crime vai muito para além da simples pena capital, e inclui a tortura de manter uma posição antinatural, ser apedrejado e flagelado pela populaça, e o afogamento lento aliado ao tormento de quatro animais com um forte simbolismo para os romanos: o cão (a protecção), o galo (a vigília e a vigilância), a cobra (símbolo da masculinidade) e o macaco (paródia da humanidade). Assim, os animais escolhidos para atacar o parricida reflectem os aspectos da sua vida como homem nos quais falhou. Se a acusação for verídica, Sexto Róscio terá assassinado o seu próprio pai, movido pelo despeito de ser o filho desfavorecido e pela ganância, tendo-o apunhalado numa viela enquanto Róscio Pater se dirigia a um bordel.
A investigação leva Gordiano aos mais imundos recantos da rua Subura, lar de muitos antros de jogo, bebida e prostituição, e coloca-o em contacto com muitas personagens que vêm de mundos diferentes, desde prostitutas a patrícios da mais nobre estirpe. Apesar de ver a sua vida e a segurança da sua amada escrava Betesda ameaçadas mais do que uma vez, Gordiano não desiste, exibindo a sua teimosia natural até desvendar a inesperada e chocante realidade deste crime, cujas raízes são afinal muito mais fundas do que aquilo que poderia ter sido imaginado e chegam até a tocar o Ditador, Sula.
A Sangue Romano seguiram-se, em rápida sucessão, O Abraço de Némesis (1992), O Enigma de Catilina (1993), O Lance de Vénus (1995) e Um Crime na Via Ápia (1996). O espaço de tempo decorrido na vida do nosso herói entre o primeiro e o segundo volumes foi preenchido com duas colectâneas de contos: A Casa das Vestais (1997) e Um Gladiador Só Morre Uma Vez (2005). A série continua com Rubicão (1999), Desaparecido em Massília (2000), Névoa de Profecias (2002), A Sentença de César (2004), e O Triunfo de César (2008).
Ao longo destes hipnotizantes volumes, vamos observando enquanto a vida de Gordiano muda à sua volta e a sua família cresce e se multiplica. Novos tópicos são abordados e explorados com mestria, tais como a relação entre senhores e escravos, a adopção, a homossexualidade e a condição das mulheres na sociedade romana. Estes tópicos controversos mantêm a série actual e relevante para o nosso clima social, apesar de as histórias se passarem há muito tempo atrás.
O cenário também se modifica, sendo que nem todos estes romances têm lugar em Roma, levando-nos por vezes para muito longe nos territórios conquistados pelo Império Romano. Ficamos a conhecer intimamente figuras históricas tais como Crasso, Catilina, Júlio César e Marco António, em relatos que acabam também por nos armar com sólidos conhecimentos históricos.
Após o final da série, seguiram-se ainda duas fantásticas prequelas. A primeira, publicada em 2012, chamada As Sete Maravilhas do Mundo, segue a viagem alucinante de um Gordiano com dezoito anos, acompanhado pelo seu mentor, Díon de Alexandria, pelas sete maravilhas do mundo antigo, muitas das quais já na época de Gordiano estavam em ruínas e das quais hoje em dia apenas as Pirâmides de Giza continuam em pé. Estas incríveis estruturas incluem o Colosso de Rodes, os jardins suspensos da Babilónia, o farol de Alexandria, a estátua de Zeus em Olímpia…
Em cada nova terra que Gordiano visita depara-se, como não poderia deixar de ser, com algum mistério, por vezes algo que os habitantes locais jamais veriam como um mistério – uma ruína assombrada por espíritos malignos, a reclusão de uma viúva sigilosa e da sua nora, um sinal dos deuses que leva a um sacrifício humano tradicional… A resolução destes problemas e a exploração de um mundo até lá desconhecido para ele levam também Gordiano a descobrir-se a si próprio e a explorar de todas as maneiras possíveis a sua liberdade.
A prequela seguinte, Os Salteadores do Nilo, de 2014, começa por relatar a vida de um Gordiano de vinte anos que vive sozinho na exótica Alexandria e a sua curiosa relação com a escrava que adquiriu no final de As Sete Maravilhas – Betesda. Eles levam uma vida tranquila, se bem que isenta de luxos, na capital egípcia. Gordiano resolve pequenos crimes e segredos e, no seu tempo livre, ouve os filósofos discursar nos degraus da famosa Biblioteca ou assiste aos espectáculos de teatro itinerante tão comuns na época.
Toda esta paz virá a ser perturbada por um grande mal-entendido que levará Gordiano a correr perigos extraordinários e a fazer amizades improváveis, indo infiltrar-se na cerrada sociedade de um grupo de salteadores e acabando por envolver-se em intrigas que dizem respeito aos Ptolemeus, a antiga e nobre dinastia de reis do Egipto que mais tarde virá a gerar Cleópatra. Mais um volume desta série de prequelas, por vezes distinguida do corpo principal de Roma Sub-Rosa e incluída numa série à parte (Ancient World), foi editado no ano passado. Chama-se Wrath of the Furies, não tendo ainda uma tradução em português.
Esta é definitivamente o tipo de série pela qual uma pessoa se pode apaixonar. Apesar de cada livro poder ser lido individualmente, cada um deles puxa-nos para o seguinte através de pequenos eventos premonitórios, pequenas janelas pelas quais se entrevê o futuro tanto da família Gordiano como de Roma. De leitura fluída e viciante, os livros de Saylor têm gerado um fervoroso seguimento. Para além desta saga, Steven Saylor publicou também um conjunto de dois romances que seguem a história de Roma desde a fundação da cidade até ao seu apogeu: Roma (2007) e Império (2010).
Tendo em conta o carácter prolífico deste escritor, que nos conseguiu regalar com a incrível soma de vinte livros em vinte e quatro anos, teremos certamente muitas coisas boas a esperar dele nos próximos tempos.