O que aconteceria se Jim Gordon investigasse os homicídios de Thomas e Martha Wayne?
Esta foi a proposta original para Gotham, mas qualquer leitor de bandas-desenhadas pode dizer que esta não é a série que lhes foi prometida – a história, a estrutura e impulso que essa promessa implicaria foi posta de lado a favor de contar as origens de vilões de semana a semana.
E essa exploração dos icónicos vilões tem sido criticada pelos fãs desde o início – que foram apresentados demasiado cedo, sem nuance, ou que foram forçados na história com artimanhas óbvias por parte dos escritores –, mas sem dúvida que o pior foi o tratamento que o pequeno Bruce Wayne recebeu na série.
Mesmo que inicialmente os escritores tivessem em mente fazer Jim Gordon a estrela e não Bruce Wayne, a atração pela origem de Batman foi demasiado forte para ser ignorada, e como muitos outros elementos inventados para Gotham, isso também acabou por perder o pé e ser arrastado para o meio do oceano. Gotham bem pode ter sido imaginada como a história de como a cidade se tornou na besta negra que os fãs conhecem, mas realmente existe um fundamental maltrato dos temas originais e substância da mitologia do Batman.
A verdade é que isto não deveria ter sido uma surpresa, visto os problemas terem logo começado nos primeiros episódios. Desde o início que houve pequenas mudanças e adições que os escritores inventaram, pois como poderiam eles convencer os fãs que não estavam a ligar a televisão semanalmente para algo que já viram ou leram muitas vezes?
A resposta? Meterem Jim Gordon na vida do órfão Wayne uma década antes de eles juntarem forças como Batman e Comissário Gordon.
É de facto uma pena que o mistério em torno da morte dos Waynes se tenha tornado impossível de resistir – já para não falar que era uma fonte de onde se poderia tirar muita água sem secar.
E se os pais de Bruce não tivessem morrido num crime aleatório? E se fosse um ataque planeado por uma organização – ou corporação – criminosa, como castigo por os Waynes se terem envolvido com forças demasiado grandes para aguentarem?
Então quase de imediato – bem, depois de um pouco de heavy metal e entradas iradas num diário – Bruce começou o caminho para se tornar num vigilante e detetive, com a motivação de descobrir porque os seus pais morreram e quem é o verdadeiro culpado.
Esta era a mesma missão de Jim Gordon, embora tenha corrido melhor para Bruce – o aparecimento de futuros vilões de Batman distraíram um pouco o detetive –, e depressa o jovem começou a suspeitar que o homicídio dos seus pais veio da própria empresa dos Waynes.
A primeira temporada acabou então com Bruce a descobrir um covil na Mansão Wayne que pertencia a Thomas Wayne.
É natural que aqueles familiarizados com a mitologia da DC Comics estivessem nesta altura já a arrancar cabelos, pois este é um grande desvio da ficção tradicional de Batman – sim, nos dias de hoje, a idade ou até a etnicidade de super-heróis podem ser mudadas, e até certos pormenores, mas é necessário manter o espírito da personagem, e no caso de Gotham eles não apenas dispensaram pequenos detalhes da história de Bruce Wayne, como deitaram completamente fora temas e motivações, e acima de tudo a tragédia no centro do universo de Batman.
Porque até quando o celebrado escritor Scott Snyder usou o lançamento de New 52 da DC Comics para apresentar o Tribunal das Corujas – uma sociedade centenária de endinheirados que existe nas sombras de Gotham –, ele fez questão de que Bruce não encontraria nada que os ligasse à morte dos seus pais – tendo dito em entrevistas que não queria mudar de todo a morte dos Waynes. E infelizmente – embora fosse óbvio, seguindo o enredo tomado pela série – o criador Bruno Heller já disse que o Tribunal irá eventualmente surgir também em Gotham.
Mas com a estreia da segunda temporada ontem na Fox, os criadores de Gotham deviam parar de fingir que isto ainda é uma “história de Batman”, pois atravessaram uma linha que talvez prove ser a desgraça da série.
Porque neste episódio, Bruce entra à força na não-isto-não-é-uma-Batcaverna e nela encontra uma carta do seu pai endereçada a si.
Pois acontece que Thomas Wayne não só teve tempo antes da sua morte para escrever ao filho para lhe contar que andava a investigar a sua própria empresa e as suas suspeitas de que forças poderosas estavam a aproximar-se, como lhe ofereceu um conselho – que Bruce devia ignorar a verdade e tentar viver uma vida feliz, «… a não ser… a não ser que sintas um chamamento… um verdadeiro chamamento.»
Então em Gotham Thomas Wayne não era um dos filhos preferidos da cidade, cuja morte prova que a criminalidade crescente pode chegar a qualquer um, não interessa o estatuto. Bruce acha que a morte dos pais não foi acidental mas o resultado de uma conspiração, e decide imediatamente começar a treinar para se tornar num vigilante. E com esta única cena da segunda temporada, os escritores de Gotham conseguiram com que a transformação de Bruce Wayne em Batman passasse de uma história de obsessão e raiva para um filho a completar a demanda do seu pai.
Existem coisas que não devem ser mudadas quando se adapta um ícone ficcional, alguns pontos básicos, principalmente se estes sempre tiverem composto toda a razão da existência da personagem.
Porque alterar assim tão drasticamente o passado de Bruce Wayne é o mesmo que criar uma série de Super-Homem e nela retratar os Kents como pais sem amor por Clark – ou que Jor-El tinha mandado o filho para a Terra para a conquistar.
Bruce perder os pais para um crime de rua aleatório é importante para a criação de Batman – a razão da morte dos Waynes ser as circunstâncias e a complacência da cidade é o que transformou Batman no tipo de vigilante que é, e a sua obsessão para que mais ninguém sofra um crime sem sentido como ele sofreu é o que o motiva. Ao mudarem isso, perdem automaticamente todos os temas de raiva, perda, e vingança que tornaram a personagem no ícone que é ainda hoje, mais de 75 anos depois da sua criação.
Assim, o homem que este Bruce Wayne se vai tornar não é aquele que os fãs da DC conhecem. O Batman nunca vai aparecer nesta série porque as motivações e decisões que levaram Bruce a trocar a opulência da sua vida por uma capa e capuz foram completamente rescritas – mesmo que Gotham dê um grande salto no tempo e surja um vigilante noturno com um fato inspirado por morcegos, simplesmente não será a mesma personagem.
Parece que os escritores estavam a dizer a verdade desde o princípio – esta série não é de todo sobre a origem do Cavaleiro das Trevas.
Gotham regressa para a semana na Fox com o episódio «Knock, Knock», Terça-Feira, às 22:15.
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